Brenda Reis Chaves1; Flávia Lúcia da Silva Colares1; Ester Mendes da Silva1; Daniel Vannucci Dóbies2; Carla Aparecida Spagnol3
DOI: 10.47626/1679-4435-2021-890
RESUMO
O presente artigo de reflexão aborda a modalidade de trabalho home office, que se intensificou no Brasil a partir do contexto da pandemia da covid-19. As reflexões foram originárias de discussões realizadas em uma disciplina do Curso de Mestrado Profissional em Gestão de Serviços de Saúde, de uma Escola de Enfermagem do estado de Minas Gerais. Os autores problematizaram questões relacionadas ao home office, que estão interferindo em suas vidas, mas, também, na vida dos trabalhadores de modo geral, ocasionando problemas sociais, econômicos e relativos à saúde do trabalhador. As reflexões foram elaboradas em articulação com alguns conceitos da Análise Institucional. O objetivo é analisar o home office considerando-o como analisador do trabalho no contexto da pandemia da covid-19. A partir da célere instalação do trabalho remoto, idealizou-se os benefícios e não foram considerados os possíveis prejuízos dessa modalidade de trabalho. Assim, diversos profissionais em home office passaram a trabalhar em condições inadequadas, sem a infraestrutura necessária e o suporte para a realização das atividades, como a disponibilização de mobiliário ergonômico, equipamentos, materiais, acesso à internet, assistência técnica, capacitações e acompanhamentos. Entretanto, não se pode desprezar a alternativa do home office, pois diversos trabalhadores se identificaram com essa modalidade de trabalho e muitas organizações se beneficiam com a sua institucionalização. Ao mesmo tempo, não se pode ficar "entorpecido", à espera de um milagroso regresso à realidade pré-pandêmica, para organizar de forma menos alienada o novo tipo de "normalidade" no mundo do trabalho.
Palavras-chave: teletrabalho; COVID-19; saúde do trabalhador; administração de recursos humanos; condições de trabalho; análise institucional.
ABSTRACT
This opinion article addresses teleworking, which has gained momentum in Brazil due to the COVID-19 pandemic. The discussions arose from a course in the Professional Master's Degree in Health Services Management at a nursing school in the state of Minas Gerais, Brazil. The authors raised teleworking-related questions, which are not only affecting their lives, but also the lives of workers in general, causing problems socially, economically, and related to workers' health. The reflections were drawn up using some concepts from institutional analysis. This article aimed to analyze teleworking as an analyzer of work in the context of the COVID-19 pandemic. As teleworking rapidly took off, the benefits were envisioned, but the potential detriments of this type of work were not considered. As a result, many professionals working from home began to work in unsuitable conditions, lacking the necessary infrastructure and support to perform their activities, such as ergonomic furniture, equipment, materials, internet access, technical assistance, training, and support. However, teleworking should not be overlooked, as many workers have identified with this type of work and many organizations have benefited from it becoming institutionalized. However, we cannot remain "numb," waiting for some miraculous reversion to pre-pandemic conditions, in order to organize the new type of "normal" in the world of work in a less alienated way.
Keywords: teleworking; COVID-19; occupational health; personnel management; working conditions; institutional analysis.
INTRODUÇÃO
Os primeiros casos de infecção causados pelo novo coronavírus (SARS-CoV-2) ocorreram na cidade chinesa de Wuhan, no início de dezembro de 20191. A dispersão do vírus ocorreu de forma extensa e rápida, causando a doença denominada covid-19, que foi declarada pandemia em 11 de março de 2020, pela Organização Mundial da Saúde (OMS), e no dia 20 do mesmo mês, foi decretado estado de calamidade pública no Brasil2,3.
Assim, a pandemia da covid-19 desencadeou mudanças abruptas na vida de toda a população mundial. Na ausência de tratamentos eficazes e na inexistência de vacinas para a doença naquele momento, dentre as medidas preventivas, o distanciamento social tornou-se imprescindível4. Em decorrência disso, vários serviços públicos e privados foram forçados a estabelecer, em um curtíssimo período de tempo e quando aplicável, que seus funcionários trabalhassem em casa. Tal decisão pretendia dar seguimento às atividades produtivas, evitando contatos sociais que propagassem a doença.
Diante dessa realidade, estima-se que cerca de 81% da força de trabalho mundial foi afetada pelas mudanças de local de trabalho5. No Brasil, os dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNADCOVID-19) mostram que 8,3 milhões de trabalhadores, até a primeira semana de setembro de 2020, estavam trabalhando em casa6.
Logo após a declaração da pandemia, foi publicada, no Brasil, a Medida Provisória (MP) 927/2020, que, naquele momento, possibilitou ao empregador alterar o regime de trabalho presencial para o teletrabalho, o trabalho remoto ou outro tipo de trabalho à distância, sem a necessidade de um acordo mútuo em um contrato de trabalho. Essa MP dispôs que, caso o trabalhador não tivesse os equipamentos tecnológicos e de infraestrutura necessários e adequados para realizar o teletrabalho, a organização poderia fornecer esses equipamentos em regime de comodato, por exemplo, e pagar por serviços de infraestrutura, que não caracterizariam verba de natureza salarial7.
Com o objetivo de complementar a MP supracitada, que apontava alternativas trabalhistas para o enfrentamento da calamidade pública decorrente da pandemia da covid-19, o governo federal, em 1º de abril de 2020, publicou a MP 936/2020, que teve a finalidade de reduzir os efeitos para o emprego e a renda dos trabalhos formais, além de reduzir os impactos sociais da calamidade pública. Essa nova MP abrangeu suspensão temporária do contrato de trabalho, redução da jornada e salário proporcional, além do pagamento do Benefício Emergencial de Preservação do Emprego e da Renda8.
Ressalta-se que a MP 927/2020 perdeu sua validade e não foi transformada em lei pelo Congresso Nacional. No entanto, algumas medidas, como a redução de jornada e a suspensão de contratos, dispostas na MP 936/2020, foram prorrogadas e convertidas na Lei nº 14.020/2020. Essa lei institui o Programa Emergencial de Manutenção do Emprego e da Renda e dispõe sobre medidas complementares para o estado de calamidade pública e para a emergência de saúde pública, de importância internacional, decorrente do novo coronavírus9.
Nesse contexto, em que as legislações trabalhistas surgiram como medidas de enfrentamento da crise causada pela pandemia, uma das modalidades de trabalho remoto que ganhou destaque foi o home office. Nessa modalidade, o trabalho é realizado na residência dos trabalhadores, ou em qualquer lugar fora das instalações físicas do empregador, que se caracteriza pela flexibilização no regime de trabalho presencial, regulado por uma política interna da empresa. Quando há utilização de tecnologias de informação e de comunicação, também pode ser denominado de teletrabalho10,11.
Esse cenário possibilitou que a maioria das organizações propagasse diversas vantagens do trabalho remoto como: redução do tempo de deslocamento, possíveis ganhos de produtividade, aumento da motivação do trabalhador, melhor equilíbrio entre a vida pessoal e a profissional, mais flexibilidade e melhor controle dos cronogramas das atividades. No início da pandemia, tais promessas fizeram com que o home office se transformasse em "objeto de desejo" de muitos trabalhadores, pois, além de tudo, este emergiu como uma possibilidade de conciliar trabalho e distanciamento social, mantendo as tarefas laborais usuais com o benefício de uma menor exposição ao novo coronavírus.
Tais condições permitiram expandir e intensificar a realização do teletrabalho. Conjuntamente, apareceram desafios e desvantagens desse tipo de home office: aumento dos custos domiciliares e do nível de sedentarismo, inevitáveis problemas de comunicação (falta de sinal) e mistura de tarefas de casa e do trabalho. Além disso, houve aumento do risco ergonômico, devido à falta de infraestrutura adequada para um ambiente laboral dentro do lar, que pode promover o aparecimento de distúrbios musculoesqueléticos. A combinação desses problemas, certamente, dificulta o rendimento e o desempenho nas atividades realizadas12.
Diante dessa realidade, acrescenta-se a presença de sofrimentos psíquicos, tais como: estresse, ansiedade, isolamento, dentre outros. Sem sombra de dúvida, essas angústias afetam a produtividade, a saúde e o bemestar ocupacional13.
Uma vez que a prática do teletrabalho foi intensificada no último ano e pode precarizar as condições de trabalho, existem alguns cuidados e estratégias a serem adotados para criar um ambiente favorável ao desenvolvimento dessas atividades, tais como: a manutenção da continuidade do trabalho, o fornecimento de infraestrutura e o suporte para a realização das atividades, o estabelecimento de política para o teletrabalho a longo prazo, a orientação do tempo e a redução da jornada de trabalho14.
A partir dessas considerações, que retratam uma aceleração e possível tendência de maior crescimento do home office na sociedade brasileira, elaborou-se o presente artigo de reflexão, que aborda essa modalidade de trabalho.
As reflexões foram originárias de discussões realizadas em sala de aula e no trabalho final de uma disciplina optativa, ofertada no Curso de Mestrado Profissional em Gestão de Serviços de Saúde, de uma Escola de Enfermagem do estado de Minas Gerais. Essa disciplina foi ministrada na modalidade do ensino remoto emergencial, no período de 30 de novembro de 2020 a 8 de março de 2021, com carga horária de 45 horas.
Dentre os autores deste artigo, três estavam matriculados na referida disciplina, sendo duas enfermeiras e uma médica, que trabalham em serviços de saúde localizados em Belo Horizonte, estado de Minas Gerais. Essas profissionais de saúde não atuam diretamente na assistência aos usuários, desenvolvem atividades de auditoria, de educação permanente e relacionadas à saúde do trabalhador, o que permitiu que realizassem grande parte de suas atividades na modalidade home office durante a pandemia.
Tal condição foi convidativa para os autores problematizarem questões relacionadas ao home office, que vem interferindo de forma significativa em suas vidas, mas, também, na vida dos trabalhadores de modo geral, ocasionando problemas sociais, econômicos e relativos à saúde do trabalhador.
As reflexões foram elaboradas em articulação com alguns conceitos do referencial teórico e metodológico da Análise Institucional (AI), e para aprofundar a discussão e fortalecer a produção coletiva deste artigo, também participaram como autores a coordenadora da disciplina e um aluno de doutorado de outra universidade, que foi convidado para ministrar uma aula sobre o conceito de analisador, sendo esse um dos conceitos centrais da AI.
Diante do exposto, o objetivo deste artigo é analisar o home office considerando-o como analisador do trabalho no contexto da pandemia da covid-19.
O HOME OFFICE COMO ANALISADOR NO TRABALHO: IMPLICAÇÕES NA PRÁTICA PROFISSIONAL
Em meio ao acontecimento social da pandemia do novo coronavírus, o home office pode ser abordado como um analisador das relações sociais em geral, e das relações trabalhistas em particular. Ao tomar o home office como analisador, indica-se que este pode provocar análises que desnaturalizam o processo social em curso, tal como é a proposição do referencial teórico-metodológico da AI criado por René Lourau e Georges Lapassade.
Ao desnaturalizar os eventos e os arranjos sociais, analisando o conjunto de atravessamentos normativosinstitucionais, permite-se, aos sujeitos, que se localizem como implicados e não submetidos ao que lhes acontece, o que amplia possibilidades de agir, recuar, espreitar e/ou negar de modo desalienado.
Esse modo desalienado de olhar para o mundo do trabalho permite aos trabalhadores, mesmo em um contexto turbulento, fazerem suas análises. Uma delas é de que o trabalho à distância não é novidade, visto que muitos profissionais já utilizavam dessa modalidade muito antes da pandemia da covid-19. Entretanto, a pandemia "obrigou" diversas organizações a adotá-lo para manter a sua produtividade. Assim, algo completamente impensável para a grande maioria dos trabalhadores, em um passado recentíssimo, passou a ser visto como o "novo normal" para muitos.
Pode-se, inclusive, dizer que trabalhar em casa era o sonho de várias pessoas, pois possibilitaria uma maior flexibilidade de horários e novas configurações diárias, e nesse contexto de pandemia, uma menor exposição ao risco de contrair e propagar a covid-19 e outras doenças. Além disso, o estresse e os riscos dos deslocamentos, por ora, acabariam. O tempo que antes era perdido no trânsito, poderia ser melhor aproveitado com a família e as pessoas amadas, com o descanso e o lazer. As horas despendidas nos preparativos para sair de casa e ir ao trabalho tornarse-iam preciosos minutos a mais de sono.
Para as pessoas que moram sozinhas, trabalhar em casa poderia melhorar a concentração, visto que as interrupções nas organizações, por outras pessoas, diminuiriam ou seriam inexistem. O ambiente ficaria mais acolhedor e agradável; as discussões cotidianas, como, por exemplo, pela "temperatura do ar condicionado" ou pela "janela aberta ou fechada" não existiriam mais. Seria possível se alimentar melhor, com mais calma, de forma mais agradável. Na modalidade do home office, o trabalhador também teria a opção de resolver questões domésticas pessoalmente e acessaria serviços que são disponíveis somente em horário comercial.
O trabalho remoto seria capaz, ainda, de proporcionar algo antes totalmente impraticável, tal como estar em outra cidade sem trazer prejuízo às atividades laborais, ou seja, poder trabalhar de qualquer lugar. O home office, dessa forma, não sequer implicaria "trabalhar em casa", pois permitiria cumprir objetivos remotamente, de qualquer lugar do planeta, bastando ter computador, celular e acesso à internet.
Em princípio, o home office proporcionaria diversos benefícios e vários desses ganhos foram efetivamente obtidos. Entretanto, na prática, isso não se mostrou totalmente verdadeiro. Mesmo sendo desejo de vários profissionais, o deslocamento do local de trabalho para dentro dos lares, no contexto da pandemia, ocorreu de forma acelerada e abrupta, trazendo impactos para o processo de trabalho e para a vida das pessoas. Nesse sentido é que o home office tem se revelado como um analisador no mundo do trabalho.
Segundo Lapassade, os analisadores dispõem de um material analítico que leva as pessoas a analisarem suas implicações15. Lourau acrescenta que tal trabalho não se limita a uma revelação, mas a um processo de deslocamento e de desconstrução ao dizer que "a instituição possui o poder de nos objetivar, de nos coisificar em estatutos e papéis. O analisador 'desobjetiva': ele desfaz os estatutos e os papéis, nos restitui a subjetividade. [...] a instituição possui o poder de materializar em formas aparentemente neutras e universais, a serviço de todos, forças econômicas e políticas que nos dominam, fingindo nos ajudar e nos defender. O analisador desmaterializa as formas da opressão, revelando as forças que nelas se escondem, e combate quaisquer formas materiais"16.
Assim, a análise das implicações pode contribuir para que alguns profissionais não sejam iludidos com o "objeto de desejo" (o home office). Podem, por exemplo, colocar em análise como os seus espaços domésticos se modificaram abruptamente, com mesas de jantar transformadas em escrivaninhas, e salas de estar (quartos, corredores e outros "cantos" da casa) tornados em escritórios e salas de reuniões improvisados. De modo que passaram a utilizar os computadores pessoais e a própria internet para as atividades do trabalho, tendo iluminação e mobiliários não adequados e confortáveis para utilização por longos períodos de tempo. Pelo atendimento imediato da demanda por manter a produção, esses profissionais não analisaram os diversos sinais de precarização no trabalho, ou não reuniram condições para conter esse processo.
De modo geral, diversos trabalhadores tiveram que modificar suas casas, a fim de obterem um ambiente agradável e confortável para exercer suas atividades laborais. No entanto, algumas organizações não forneceram recursos financeiros e materiais, recaindo sobre os profissionais a responsabilidade de investimento financeiro para fazer esta adaptação de ambiente. Nesse caso, as condições econômicas se tornam favoráveis para as empresas e, em contrapartida, desfavoráveis para os trabalhadores, que tiveram que arcar com os custos de um "escritório improvisado"17.
O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) reforça que, para muitas organizações, a forma de conter a veiculação do novo coronavírus, a maneira de "isolar" seus trabalhadores e o modo acelerado para desenvolver determinados trabalhos em casa vieram acompanhadas de uma precarização das condições de trabalho6.
Nesse sentido, a adoção de uma "nova prática", denominada home office, com uso de anglicismo, típico dos tempos contemporâneos e do linguajar corporativo, promete status e novidade, mas esconde efeitos de precarização do trabalho em curso e a heterogeneidade dessa prática no Brasil. Há condições de trabalho em casa muito diferentes, a depender da arquitetura e da estrutura do imóvel, da composição e do relacionamento familiar, da vizinhança, da qualidade do sinal de internet, entre outros fatores. Sem considerar as singularidades pessoais e coletivas para a realização do trabalho nesse ambiente, fica-se com uma ideia simplista de que tudo pode ser adaptado com o tempo, a partir de alguns ajustes práticos e da disposição pessoal.
Essa suposta elegância do termo home office deve ser dessacralizada, para que sejam criadas condições de análises das singularidades e dos enfrentamentos micropolíticos. Por exemplo, a flexibilidade da jornada de trabalho pode se confundir com excedente de horas e/ ou períodos inadequados de trabalho (tarde da noite, nos dias de folga), com a chefia, beneficiada por essa suposta maleabilidade, sentindo-se no direito de acionar os trabalhadores fora de seus respectivos horários de trabalho. A questão do tempo precisa mesmo ser analisada, pois influencia diretamente na saúde dos trabalhadores. Além disso, em casa, a idealização de uma alimentação melhor pode se reverter em consumo excessivo de guloseimas e horários irregulares para as refeições. Da mesma forma, as pausas podem não ser obedecidas.
Uma outra análise, que não poderia ficar de fora dessa discussão, são as condições de trabalho vivenciadas por trabalhadores que dividem o tempo de realização das suas atividades laborais com o cuidado de familiares, principalmente as crianças, que no período da pandemia passaram a fazer suas atividades escolares em casa. Nesse contexto, o trabalho sofre diversas interferências, visto que as tarefas podem se fragmentar, reuniões podem ser interrompidas e o silêncio tornar-se impossível quando os filhos requerem maior atenção. Inclusive, as crianças, por serem menos capturadas pelas normas sociais, são analisadoras dessa situação. Nesse caso, elas exibem as dificuldades de uma adaptação em curto espaço de tempo e o quanto a nossa sociedade desvaloriza e/ou pouco se ocupa da educação infanto-juvenil.
Nessa situação, deve-se reconhecer, também, que recai com maior intensidade sobre as mulheres esse exercício de cuidados com os filhos e de familiares em geral, exibindo outro ponto crítico da prática de home office para determinadas pessoas. A conciliação entre trabalho e cuidados familiares, em princípio facilitado pelo home office, também traz enormes riscos de sobrecarga afetiva e de trabalho, que precisam entrar no conjunto das análises, ao invés de serem simplesmente naturalizados.
Além disso, é preciso discutir as relações interprofissionais, visto que as plataformas digitais passaram a representar as "salas de reuniões, os corredores e os cantinhos do café", o que pode propiciar a perda de vínculo emocional, em decorrência da ausência de uma maior multiplicidade na interação presencial com outras pessoas. Afinal, somos seres sociais e emocionais, e retirar os meandros das relações interpessoais pode impactar negativamente a condição emocional e o sentimento de pertencimento.
A atropelada disseminação do home office com a chegada da pandemia evidencia o quanto este período foi um momento histórico "quente", no qual as mudanças se processaram sem planejamentos, transições e cuidado com as pessoas. Certamente, as experiências anteriores de home office e a tecnologia de telecomunicação disponível são dois fatores que forneceram a materialidade necessária para seguir o curso dessa institucionalização acelerada.
Mas, há outras características dos tempos atuais que contribuíram para que isso acontecesse: a naturalização e a generalização do produtivismo. O fato de as responsabilidades produtivas recaírem de modo individualizado na sociedade marcada pela racionalidade neoliberal, combinado ao crescimento da ameaça de perda de emprego no momento crítico da pandemia, intensificou a obediência do cumprimento dessa orientação para o home office.
De modo mais geral, é possível verificar que o enorme turbilhão social causado pela pandemia provocou uma acelerada institucionalização do home office como novo modo de trabalho para vários profissionais: administrativos, professores, vendedores, artistas, jornalistas, alguns trabalhadores da área da saúde, entre outros. É evidente que nem todos os profissionais, nem mesmo dessas categorias listadas, migraram para o home office, sobretudo pela impossibilidade de desempenhar certas práticas laborais por essa via. Ainda assim, verifica-se que essa modalidade de trabalho (home office) produziu inúmeras transformações no mundo do trabalho.
Há que se considerar, então, as singularidades do home office desempenhado pelos trabalhadores na emergência da pandemia e a dimensão do quanto e de como essa modalidade de trabalho provoca mudanças nas práticas profissionais, a fim de não banalizar suas consequências sobre trabalhadores, empregadores e sociedade, de modo geral.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A questão do home office como analisador puxa uma linha de conexões sociais a serem observadas, que inclui: a agilidade para ganho de produtividade às custas de perda de qualidade das práticas, reformas trabalhistas e administrativas subsequentes, que retiram direitos dos trabalhadores no Brasil, motivações econômicaslucrativas sobrepostas a quaisquer outras, avanço do uso da tecnologia nas práticas profissionais e nas relações sociais de maneira geral, entre outras.
Nessa perspectiva, a pandemia da covid-19 interrompeu, mas, também, criou e acelerou várias práticas. Entretanto, a célere instalação do trabalho remoto exibiu o anseio pela manutenção da produtividade, acionando todos os recursos disponíveis. Idealizou-se os benefícios e não se considerou os possíveis prejuízos.
Assim, diversos profissionais que estão realizando atividades em home office seguem trabalhando em condições inadequadas. As adequações necessárias ao espaço domiciliar, a aquisição/atualização de equipamentos, materiais, melhores planos de internet, foram algo possível apenas a alguns poucos privilegiados.
Além do mais, os trabalhadores não têm a mesma capacidade de acompanhar, aprender e lidar com todas as novas práticas. Isso tudo produz inúmeras inequidades.
Portanto, as condições do home office devem incluir demandas e necessidades que possam melhorar as condições de trabalho, tais como: disponibilização de mobiliário ergonômico, equipamentos, materiais, acesso à internet, assistência técnica, capacitações e acompanhamentos. Essas medidas podem evitar que se perca uma oportunidade de implementar algo que pode ser até benéfico a empregados e empregadores, assim como à sociedade, em sua totalidade, e ao meio ambiente.
Cabe ressaltar que não se pode desvalorizar os ganhos do home office, pois diversos trabalhadores, com certeza, identificaram-se com essa modalidade de trabalho, e muitas organizações se beneficiam com a sua institucionalização. De qualquer modo, não se pode ficar "entorpecido", à espera de um milagroso regresso à realidade pré-pandêmica (algo que não se sabe quando, ou mesmo se vai acontecer) para organizar de forma menos alienada o novo tipo de "normalidade" no mundo do trabalho.
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Contribuições dos autores: BRC foi responsável pela concepção do estudo, análise formal, metodologia, validação, redação - esboço original e redação - revisão e edição. FLSC foi responsável pela concepção do estudo, análise formal, metodologia, validação, redação - esboço original e redação - revisão e edição. EMS foi responsável pela concepção do estudo, análise formal, metodologia, validação, redação - esboço original e redação - revisão e edição. DVD foi responsável pela concepção do estudo, supervisão, análise formal, metodologia, validação, redação - esboço original e redação - revisão e edição. CAS foi responsável pela concepção do estudo, supervisão, análise formal, metodologia, validação, redação - esboço original e redação - revisão e edição. Todos os autores aprovaram a versão final submetida e assumem responsabilidade pública por todos os aspectos do trabalho.
Recebido em
17 de Setembro de 2021.
Aceito em
15 de Dezembro de 2021.
Fonte de financiamento: Nenhuma
Conflitos de interesse: Nenhum