Mônica Ramos Daltro; Pedro Guerra Júnior; Luiza Rodrigues Santos
DOI: 10.47626/1679-4435-2022-1002
RESUMO
INTRODUÇÃO: A medicina vem apresentando uma crescente expansão da mão de obra feminina. Apesar de maior valorização e confiança em mulheres nos espaços pediátricos, as violências de gênero fazem parte da agenda de saúde.
OBJETIVOS: Investigar como os pediatras percebem as vivências de gênero no cotidiano do trabalho, discutindo os seus efeitos na prática profissional.
MÉTODOS: Tratou-se de um estudo descritivo, exploratório e qualitativo, realizado em um hospital universitário com 14 pediatras do serviço de urgência e emergência. As entrevistas semiestruturadas foram realizadas virtualmente, investigando dados sociodemográficos e percursos formativo e profissional. As narrativas foram analisadas pelo método de análise de conteúdo. Foram formadas cinco categorias: escolha pela especialidade; maternidade; lugar de acolhimento; violências; e o médico homem.
RESULTADOS: Observou-se que pediatras constroem seu cotidiano profissional a partir de valores conservadores de ancoramento patriarcal e machista.
CONCLUSÕES: O conjunto das narrativas coloca a importância do enfrentamento da desigualdade de gênero no âmbito da formação médica.
Palavras-chave: pediatria; gênero e saúde; iniquidade de gênero.
ABSTRACT
INTRODUCTION: The medical field has witnessed a growing expansion of the female workforce. Despite a greater appreciation and trust in women in pediatric spaces, gender violence remains a significant concern on the health agenda.
OBJECTIVES: This study aimed to investigate how pediatricians perceive gender experiences in daily work, discussing its effects on professional practice.
METHODS: The study adopted a descriptive, exploratory, and qualitative approach and was conducted in a university hospital with 14 pediatricians from the urgency and emergency service. Virtual semi-structured interviews were conducted to explore sociodemographic data, training, and professional background. The narratives obtained were subjected to Content Analysis, resulting in the construction of five categories: choice by specialty; maternity; place of reception; violence; and the male doctor.
RESULTS: It was observed that pediatricians build their professional routine based on conservative values of patriarchal and sexist anchorage.
CONCLUSIONS: The set of narratives emphasize the importance of confronting gender inequality within the scope of medical training.
Keywords: pediatrics; gender and health; gender inequality.
INTRODUÇÃO
A medicina, desde sua origem, é ocupada majoritariamente por homens. No entanto, embora a maioria dos médicos seja formada por homens no Brasil, a profissão vem apresentando crescente expansão da mão de obra feminina, configurando uma tendência da feminização da medicina no país1,2.
Segundo a Demografia Médica no Brasil, em 2020, os homens representaram 53,4% do quantitativo de médicos, em comparação com 57,5 e 69,2%, em 2015 e 1990, respectivamente. Ao analisar os dados por faixa etária, as mulheres predominam entre os grupos mais jovens, correspondendo a 58,5% de médicos até 29 anos e a 55,3% de médicos entre 30 e 34 anos. Entre 35 e 39 anos, verifica-se um equilíbrio entre os sexos, com 49,7% de mulheres2.
Em relação às especialidades, a pediatria corresponde à segunda área médica com o maior quantitativo de mulheres especialistas (74,4%)2. Essa tendência pode ser reflexo de alguns aspectos relacionados a identidade, personalidade e comportamentos estruturados ao longo do processo histórico nas mulheres1. Verifica-se que a valorização dos fatores psicossociais, a realização de assistência com foco no paciente e o fortalecimento da relação médico-paciente, com a possibilidade de desenvolver relações mais prolongadas, apresentam maior predomínio entre mulheres3-5.
Tendo em vista que o processo de socialização difere entre homens e mulheres, as mulheres podem apresentar diferentes tendências em relação aos homens, assim como diferentes modos de manejar o cuidado e a comunicação no âmbito da prática de cuidado, perspectiva que, segundo a literatura, reflete a escolha do pediatra pelos pais e pela criança, com evidente preferência pelo sexo feminino6.
A figura da profissional mulher pode ser associada a maior confiança dos pais devido ao maior potencial das mulheres para lidar com as crianças e com a família por meio de atitudes empáticas, as quais estão mais associadas ao sexo feminino6-8. Essa realidade acaba por repercutir em maior valorização e confiança em mulheres nos espaços pediátricos6.
Entre os mitos construídos pelo patriarcado sobre a mulher, a maternidade enquanto categoria ficcional foi o mais difundido e naturalizado, afirmando essa como definidora da identidade da mulher circunscrita à ideia de cuidado, sensibilidade e abnegação. Essa noção de maternidade como instituição sustenta efeitos reducionistas e nocivos para a vida profissional da mulher, organizando hierarquias e conferindo valores a um sistema de gênero promotor de violências e desqualificações9.
As violências de gênero fazem parte da agenda de saúde; desse modo, é de grande importância analisar como esse tipo de violência, que encontra respaldo na cultura patriarcal e muitas vezes é sedimentada institucionalmente e reproduzida pelos seus agentes, afeta o cotidiano dos profissionais de saúde da área da pediatria. Faz-se necessário investigar como os pediatras percebem as vivências de gênero no cotidiano do trabalho, discutindo os seus efeitos na prática profissional.
MÉTODOS
Tratou-se de um estudo descritivo, exploratório e de abordagem qualitativa, realizado em um Hospital Universitário no Nordeste do Brasil. Foram entrevistados todos os 14 pediatras do serviço de urgência e emergência pediátrico. As entrevistas semiestruturadas foram realizadas virtualmente entre fevereiro e abril de 2021, investigando dados sociodemográficos (idade, gênero, cor autodeclarada, estado civil, naturalidade, número e idade de filhos) e percursos formativo e profissional, e as narrativas foram analisadas pelo método de análise de conteúdo10. Os critérios de inclusão foram médicos com título de especialista em pediatria, admitidos por concurso público no referido hospital e com atuação profissional no serviço de urgência e emergência pediátrico. Os critérios de exclusão foram médicos que não puderam participar por motivo de saúde ou falta de disponibilidade.
A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética da Universidade Federal de Sergipe (CEP/UFS), sob parecer número 4.530.759, e todos assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Foram utilizados nomes de personagens das obras literárias do autor Jorge Amado, que descreve mulheres empoderadas e dispostas a realizar mudanças na sua comunidade.
RESULTADOS
A análise das narrativas, através da análise de conteúdo, identificou cinco categorias temáticas, identificadas no Quadro 1, sequencialmente discutidas de forma inter-relacionada.
DISCUSSÃO
A população do estudo foi constituída por 14 pediatras, dos quais 3 eram do sexo masculino e 11 eram do sexo feminino, com idade variando entre 29 e 53 anos. A maior parte declarou-se como raça negra (parda e preta), casada e sem filhos.
Estudos demonstraram que o gênero possui influência na escolha da especialidade em medicina, de forma que os homens têm maior preferência pelas áreas da cirurgia geral e ortopedia, enquanto as mulheres preferem pediatria, obstetrícia e ginecologia11-13. No presente estudo, ao serem questionados sobre a motivação da escolha da pediatria, os participantes não mencionaram a influência do gênero.
A pediatria pode atrair mulheres pela associação histórico-cultural do cuidado com a maternidade, sendo mencionada como fator contribuinte na escolha da pediatria:
Sempre quis ser mãe, sempre gostei muito de criança, eu acho que facilitou muito a minha escolha. (Lívia)
A imagem da mulher como cuidadora é projetada para funções que desempenham acolhimento. A construção sócio-histórica e cultural do papel da mulher-mãe revela a percepção de que essa figura é detentora de um saber informal atrelado à ideia de maternidade compulsória, que reduz as mulheres à função reprodutiva e de responsável pelos cuidados dos filhos, premissa que serve para a manutenção das mulheres no ambiente doméstico, mesmo quando ocupam funções no mundo público9.
É importante analisar o lugar da paternidade neste cenário profissional majoritariamente feminino, onde a experiência de paternidade é desapartada da ideia de cuidado. Além disso, a experiência prática dos profissionais destacados por essa pesquisa aponta que quem faz a escolha e leva a criança até ao pediatra, na maioria das vezes, é a mulher e que, muitas vezes, elas não gostam que seus filhos sejam atendidos por pediatras homens. A respeito da influência do sexo na escolha do pediatra, uma participante expõe:
Influencia de algumas formas, influencia porque a maioria dos cuidadores que leva a criança no hospital é mulher, influencia porque a gente consegue ter essa empatia como eu te falei, de se colocar no lugar, de colocar no lugar não, mas de entender o lugar da mãe, consegue ter uma sensibilidade do feminino de compreender a rotina de uma mulher numa família. (Dora)
Esse padrão cultural que afasta os homens das funções do cuidado é transmitido por diferentes sociedades e gerações, pois é sustentado pelos processos educacionais informais e formais que passam a reproduzir formas de hierarquia sexual e desigualdade de gênero, especialmente no que concerne aos cuidados com os filhos. Esta pesquisa assinala que tal lógica discursiva está presente no cotidiano, sem dúvida se colocando como uma questão a ser enfrentada pela formação médica14.
A associação da figura mãe com a profissional pediatra é também visualizada por outra entrevistada, o que revela que existe uma espécie de espelhamento entre a experiência da maternidade e a prática profissional reafirmando essa associação entre maternidade, feminino e cuidado:
Pediatria você tem que ter paciência com a mãe, não é? [...] Se eu já tinha paciência com as mães, depois que eu me tornei mãe, a paciência acho que aumentou mais ainda. (Gabriela)
As narrativas construídas mencionam também a empatia como uma característica essencial para a pediatria, como estratégia para otimizar a comunicação com a criança e sua família. Estudos mostram que ser do sexo feminino e do estado civil casado é um importante preditor da empatia pelo médico e estudantes de medicina7,8. Essa ideia demonstra o quanto está entranhada a cultura patriarcal na sociedade que, muitas vezes, exclui automaticamente a profissional que não se enquadra nesse padrão, o que contribui para uma medicina que se sustenta em elementos de natureza excludente que secundarizam o lugar técnico do trabalho da mulher.
Os relatos a respeito da importância da empatia no contexto profissional foram colocados apenas por mulheres, em sua maior parte casada ou em união estável.
[...] eu acho que a minha comunicação é muito boa, até por me colocar muito no lugar da pessoa, tentar me colocar e ver que ali está uma situação vulnerável da família e da criança. (Don'Ana)
Na percepção das entrevistadas, ser mulher qualifica a sua compreensão da realidade da paciente, pois se mostra atenta e sensível a uma situação de vulnerabilidade em relação à mãe e à criança, o que acaba gerando identificação e conexão. As habilidades e qualidades femininas convencionalmente aceitas, de acordo com os valores heteropatriarcais, são utilizadas como critérios de preferência para a escolha da profissional e acabam por interferir na relação médico-paciente. Esse comportamento mostra como opera a desigualdade no que se refere à preferência por determinado gênero em diferentes funções e evidencia a segregação técnica, social e política do trabalho, o que contribui incisivamente para a desvalorização de determinadas profissões. Acerca da temática exclusão dentro da profissão, uma participante expôs:
Eu acho que ser mulher na pediatria, às vezes, se sente menos excluídas [sic]. Essa é a impressão que eu tenho, porque elas vêm com a pergunta "você também tem filho?". Então, elas querem saber se você se sente como elas, entendeu? Então, como essa pergunta é frequente, não acho que o fato de só ser, mas acho que o de ser mãe, para algumas mães conta, no sentido de "não, ela entende o que eu estou falando". (Eugênia)
De acordo com a narrativa, o aumento exponencial de mulheres na pediatria, por sua vez, é percebido por uma das participantes como um fator positivo, por fazer com que as médicas se sintam menos excluídas. Essa afirmativa sugere que há exclusão e discriminação em razão do gênero no cotidiano da mulher médica, e a Pediatria, mesmo com seus contornos patriarcais, se constitui como local de maior segurança. A gravidez entre médicas na pediatria, diferentemente do que ocorre em outras áreas da medicina, possibilita que sejam reconhecidas pelas mães dos seus pacientes pelos seus pacientes, que, por exercerem a maternidade, se sentem valorizadas e legitimadas.
A autora Chimamanda Ngozi Adichie15 (p. 13-15) ensina que o problema da questão de gênero é a premissa que determina "como devemos ser, em vez de reconhecer como somos". Desse modo, é gerado, pela sociedade patriarcal, o peso das expectativas de gênero que recaem sob as mulheres, sufocando cada vez mais a liberdade de poder escolher ser quem se é.
Em uma sociedade machista, muitas mulheres deixam de realizar coisas em razão do gênero, perspectiva que se coloca presente na medicina especialmente no campo da escolha pelas especialidades16. Muitas vezes, a escolha da profissão baseia-se em valores que conservam expectativas de uma maternidade compulsória, isto é, ideia que sustenta a expectativa social em relação à pessoa do sexo feminino quanto à maternidade, posto que, nesta acepção, o seu corpo foi projetado para isso e instintivamente demanda por essa experiência como primazia da reprodução. Essa ideia sequestra da mulher a liberdade de escolha pela maternidade9.
As profissionais pediatras relataram que a sua profissão carrega, muitas vezes, estigmas em virtude de uma construção social relacionada à desigualdade de gênero, o que influencia na busca dos atendimentos pelos pais e acaba interferindo nas relações com a equipe de saúde e com usuários dos serviços, que se tornam dificultosas. Assim, expõe uma participante:
Então, eu creio que sim. Existe, querendo ou não, um preconceito que está meio que enquadrado ali na sociedade, de que a maioria também das pediatras acabam sendo mulheres. Então, a gente percebe no nosso dia a dia que, infelizmente, não acho que seja uma reação correta e adequada, não acho que haja diferença no tratamento, mas muitas vezes os pais acabam procurando pediatras do sexo feminino, isso influencia. (Tieta)
Diante dessa narrativa em relação às escolhas das mães, é preciso ainda considerar o contingente alto de mulheres mães solo no Brasil, que são arrimo de família, que muitas vezes tomam essas decisões considerando a sua realidade e pela ausência de referências paternas em suas vidas. As estatísticas do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) apontam que, em 2018, havia no Brasil aproximadamente 11,5 milhões de mulheres que assumiam sozinhas as responsabilidades de educação e cuidados dos filhos17.
Mesmo em um cenário ocupado em sua maioria por mulheres, a violência de gênero também se desdobra nas relações profissionais nessa área, assim como nos atendimentos. É urgente a adoção de condutas que coíbam o assédio moral no ambiente de trabalho, violência que se revela em reiterados comportamentos de ofensa à dignidade do profissional, causando-lhe dano ou sofrimento psíquico, por meio do abuso do exercício de emprego, cargo ou função.
Apesar do aumento do quantitativo de mulheres na medicina nos últimos anos e do avanço da luta por equidade de gênero nas instituições médicas, as profissionais ainda sofrem discriminação de gênero18. Em relação a essa situação, uma pediatra pontuou:
Agora, algumas vezes, isso já foi um problema para mim, ser mulher e estar atendendo uma criança, quando um pai esteve presente e um pai tentou me oprimir por ser mulher, sabe? Já me senti, algumas vezes, violentada nesse sentido assim, de ter uma ameaça porque ele era homem e eu era mulher. Por exemplo, eu acho que sendo médica mulher, acho que, ser uma ortopedista, por exemplo, deve ser muito mais difícil do que ser pediatra. Justamente por isso que eu te falei que a maioria dos acompanhantes das crianças é mulher, então, é mais fácil manter esse diálogo e não ter essa possibilidade de ser violentada dessa forma que eu lhe relatei. (Dora)
As estratégias de violência de gênero no ambiente de trabalho evidenciam-se no tratamento de forma infantilizada, como se as mulheres fossem incapazes de compreender uma linguagem mais formal ou até mesmo técnica. Além de tudo, não são respeitadas, sendo desqualificadas e questionadas quanto à sua competência profissional. Por isso, é comum ocorrer a descredibilização da profissional médica em outras especialidades em razão do gênero - o que inclui seu corpo -, conforme expôs a participante a seguir:
Como mulher, sim. Existe ainda uma compreensão na sociedade que o médico é homem. E pelo meu tamanho e minha cara de criança mesmo, é por isso que eu me autoafirmo como médica, porque quem me olha não acha que eu tenho idade para ser médica. E no hospital ainda fico mais camuflada, de touca, de máscara, então, realmente, todo mundo agora é parecido e as roupas são roupas privativas que não tem identificação. Então, hoje, ainda mais, há essa necessidade de eu me apresentar porque não tem nenhuma identificação de que eu sou a médica, mas mesmo quando eu tinha identificação eu me apresentava também por causa da fisionomia que não indicava ser de médica. Lá no Hospital Universitário, a gente atende com os internos, e inúmeras vezes os pacientes se direcionavam aos internos, principalmente homens, como o médico, e eu era reconhecida como a estudante. (Tereza)
Essa fala denuncia a necessidade de descontruir determinados preconceitos que vinculam a imagem profissional a uma figura esperada por uma medicina tradicionalmente composta por homens brancos, o que exclui a possibilidade de um ambiente profissional inclusivo e constituído por diferentes identidades de gênero, etárias e raciais. Muitas vezes, esse imaginário social relacionado à figura do médico encontra respaldo em padrões culturais que sustentam o preconceito de gênero, de raça e de classe e causam exclusão, sofrimento e violências veladas ou explícitas.
A questão de gênero também se impõe no manejo da clínica, conforme instrui o manual de "Orientação à consulta do adolescente: abordagem clínica, orientações éticas e legais como instrumentos ao pediatra", elaborado pela Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP)19, em que se determina que, na primeira consulta, é fundamental pontuar que a pessoa central daquele atendimento é a criança/adolescente, esclarecendo, assim, quais são os seus direitos em relação a sigilo, privacidade e confiabilidade.
Contudo, é fato que nenhum manual ensina sobre os limites da ética no processo do toque físico, cujos valores morais podem e devem ser ensinados no âmbito da academia, mas demandam o estabelecimento de uma cultura sensível às preocupações éticas, e isso implica atenção especial ao lugar das diferenças de gênero na cultura. Participantes da pesquisa do gênero masculino manifestaram, em suas falas, que sentem o desconforto de algumas pacientes ao realizarem o exame físico:
Muitas vezes, assim, o exame físico, se a gente vai examinar uma menina, ou vai examinar a genitália, a menina pode ficar um pouco receosa, mas, assim, eu deixo muito bem à vontade, se a criança não se sentir bem, eu pergunto "sua mãe vai tirar a calcinha, que eu preciso examinar, para ver como é que está, se está tudo bem". Mas aqui, se a criança não quer, eu não insisto e falo "mãe, é melhor a senhora procurar depois uma médica, mulher, para que veja isso". Mas, assim, é bem raro isso acontecer, é muito raro isso acontecer, geralmente, quando ela chega lá no exame físico já está mais segura, e menino ou menina não tenho maiores problemas em examinar, não. (Guma)
A narrativa expressa a importância de respeitar os limites do corpo da pessoa submetida ao exame físico, considerando que pode haver medo, vergonha ou desconforto com um pediatra do sexo masculino. Esse relato é de extrema relevância para os profissionais de saúde, visto que essa experiência pode se desdobrar em traumas na vida do paciente, trazendo-lhe sofrimento psíquico diante de uma experiência que acarretará uma memória de dor. Compreender o corpo como um campo de produções subjetivas, marcado por histórias e vivências singulares, e compreender a força do machismo na cultura ajuda na leitura das reações de um corpo a ser examinado, principalmente se esse avaliador é um homem.
A ideia do homem como alguém que pode ameaçar e não escutar está colocada no cotidiano do médico do sexo masculino também:
Talvez a parte de ser homem influencie um pouco, porque geralmente, assim, o que eu percebo, como no meio da pediatria tem muita mulher, é muito mais mulher do que homem, muitos acompanhantes preferem mulheres. Isso não acontece comigo na minha prática do consultório, por exemplo, mas eu já tive no serviço público, pessoas que dizem, eu não quero ser atendida por ele, porque ele é homem, entendeu? E isso me deixa extremamente triste, inclusive, porque não quer nem ver a confiança ainda, não quer nem tentar a confiança, meio que já bloqueia, eu acho muito ruim, mas, então, por isso o fato do gênero talvez tenha um pouco de dificuldade. Não é muito não, mas existe. [...] Eu acho que mais em relação ao gênero, porque a pediatria tem muita mulher e eu acho que acabam preferindo mulher, não sei se por pensar que a mulher seja mais doce ou tente conduzir de uma forma mais agradável. Enfim, a única coisa que eu percebi foi isso. (Antônio)
O preconceito de gênero acaba por frustrar alguns pediatras homens que são automaticamente rotulados por um padrão de masculinidade que performa a figura do pai provedor, autoritário ou apenas responsável financeiramente pelo sustento da família, incapaz de ser sensível, configurando o protótipo imaginário daquele que se exime de outras tarefas do exercício da paternidade, como educação, afeto e cuidado. Esse estereótipo evidencia a disparidade de funções exercidas entre homens e mulheres na sociedade patriarcal. Assim, a figura do pai como protagonista, cuidador, afetivo e aquele que assume responsabilidade na vida dos filhos é automaticamente excluída desse modelo profissional conservador.
Outra perspectiva que chama a atenção é a importância da discussão acerca das estratégias que visam ampliar e estimular a inclusão, a participação e o protagonismo do pai e da mãe nos cuidados dos filhos, para a desconstrução do modelo centrado na participação exclusiva da mãe20. Em relação à criança, pode haver diversos fatores que influenciam na preferência pela pediatra mulher. Essa diferença é pontuada pelo participante:
É diferente, as crianças quando são atendidas por alguém do gênero masculino, elas reagem de uma forma e quando são atendidas pelo gênero feminino agem de outra forma, mas isso é muito individual. Tenho resposta de criança para criança, tem criança que fica praticamente só aos cuidados femininos e que, quando chega alguém do sexo masculino, estranha um pouco, mas acontece o contrário também, em menor quantidade. (Pedro)
É de grande importante que o profissional pediatra estimule o desenvolvimento da criança, respeitando os seus limites, para que ela adquira autoconfiança e autoestima e possa se relacionar bem com outras crianças, com a sua família e com a sua comunidade. No entanto, a falta de identificação com pediatras do sexo masculino pode estar associada a diferentes contextos, como o abandono afetivo paterno, situações de abuso ou até mesmo ausência de referências de figuras masculinas que exerçam o cuidado físico e emocional que se dá à criança.
CONCLUSÕES
A sociedade brasileira, apesar dos recentes discursos de retrocesso moral e ético, tem avançado no sentido de produzir novas e plurais formas de viver, e a busca da equidade de gênero no campo da atenção à saúde se faz necessária. Gênero é uma questão construída no processo de interações sociais, e dar sentido a essa questão é um dos desafios do cotidiano da pediatria.
No estudo realizado, observa-se que pediatras constroem seu cotidiano profissional a partir de valores conservadores de ancoramento patriarcal e machista, perspectiva que está refletida no olhar dos pacientes, segundo a percepção dos participantes da pesquisa. Este estudo discute como reconhecer esses elementos pode auxiliar no manejo de diferentes situações clínicas.
O conjunto das narrativas coloca a importância do enfrentamento da desigualdade de gênero no âmbito da formação médica como uma ação propositiva no sentido de promover uma sociedade mais equânime e uma prática clínica que possa contemplar a pluralidade ética da vida.
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Recebido em
18 de Março de 2022.
Aceito em
29 de Setembro de 2022.
Contribuições dos autores: PGJ foi responsável pela concepção do estudo, tratamento de dados, obtenção de financiamento, investigação e metodologia. LRS participou da análise formal, recursos, software, apresentação e redação - esboço original. MRD foi responsável pela administração do projeto, supervisão, validação e redação - revisão & edição. Todos os autores aprovaram a versão final submetida e assumem responsabilidade pública por todos os aspectos do trabalho.
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