Daniele Mometti-Braz1; Rosana Teresa Onocko-Campos2
DOI: 10.47626/1679-4435-2023-1130
RESUMO
INTRODUÇÃO: Em tempos de pandemia, para muitos "o ficar em casa" não foi bem uma opção, tendo como exemplo trabalhadores da área da saúde que estiveram na linha de frente do combate à COVID-19, com a própria saúde mental posta à prova.
OBJETIVOS: Dar visibilidade ao construto das repercussões psicológicas e às estratégias de enfrentamento, contribuindo para o reconhecimento da vivência desses profissionais e para a construção de futuros saberes.
MÉTODOS: Pesquisa exploratória, de abordagem qualitativa, possibilitando empatizar, via narrativas, a vivência de 14 trabalhadores da saúde, por meio de grupo focal on-line, realizado entre agosto e setembro de 2020, com encontros transcritos e análise temática de conteúdo.
RESULTADOS: A análise das narrativas resultou em três categorias sobre a vivência desses trabalhadores: 1) O profissional enquanto paciente, destacando-se o medo de sofrer ou morrer baseado no que vivenciavam no dia a dia; 2) O exercício da função e a linha tênue entre o cuidado e a transmissão, identificando-se preocupações com o contágio de familiares e a sobrecarga de trabalho; e 3) Estratégias de enfrentamento e saúde mental, sendo apontadas questões de enfrentamento individual, como as rotinas, os cuidados, a fé, as aprendizagens, e de enfrentamento coletivo, as práticas preventivas e políticas públicas.
CONCLUSÕES: Pesquisas como esta contribuem para um arcabouço de conhecimento quanto às estratégias de enfrentamento que favorecem a saúde mental do trabalhador, além de trazer oportunidade de escuta, produzindo sentido, empatia e reconhecimento a esses profissionais.
Palavras-chave: pessoal da saúde; saúde mental; COVID-19.
ABSTRACT
INTRODUCTION: During the pandemic, "staying at home" was not an option for many people, especially health workers, who were on the front lines in the fight against COVID-19 and whose mental health was threatened.
OBJECTIVES: This study highlights the psychological repercussions of the pandemic and the coping strategies used by health workers in an effort to develop mental health resources.
METHODS: This qualitative exploratory study investigated the narratives of 14 health workers from an online focus group between August and September 2020, transcribing the meetings and performing thematic content analysis.
RESULTS: The analysis resulted in 3 categories of experience: 1) the professional as a patient, especially the fear of suffering or dying based on daily experience; 2) the fine line between providing care and being a vector of transmission, which identified worries about infecting family members and work overload; and 3) coping strategies and mental health on an individual level, such as routines, care, faith, and learning lessons, as well as on a collective level, such as prevention measures and public policies.
CONCLUSIONS: Studies such as this can contribute to a framework of knowledge about coping strategies to maintain mental health among health workers. They also provide an opportunity to listen, which produces meaning, empathy, and recognition for these professionals.
Keywords: health personnel; mental health; COVID-19.
INTRODUÇÃO
Diante da covid-19, até então, desconhecida em nível global, o mundo do trabalho se tornou profundamente afetado1, principalmente para os profissionais da saúde que se mantiveram na linha de frente dos cuidados com a população. O simples fato de uma situação não ser familiar já a torna potencial para um comprometimento psicológico2, requerendo, portanto, resiliência que, segundo Walsh3, vai além do enfrentamento e proporciona a aprendizagem da situação de crise passada, tanto de forma pessoal, familiar ou social, quanto comunitária.
Assim, buscamos, neste estudo, dar visibilidade aos profissionais da saúde, bem como reconhecimento às suas experiências, descritas por meio das narrativas, nas quais se pode identificar as repercussões psicológicas e as estratégias de enfrentamentos à saúde mental desses trabalhadores diante desse insólito momento pandêmico.
TRABALHADORES DA SAÚDE
Estão incluídos no rol de trabalhadores da saúde4 aqueles que atuam nos serviços de saúde, em espaços e estabelecimentos de assistência e vigilância à saúde, sejam eles hospitais, unidades básicas de saúde, instituições de longa permanência, clínicas, ambulatórios, laboratórios ou outros. Portanto, fazem parte desse grupo: médicos, enfermeiros, nutricionistas, fisioterapeutas, terapeutas ocupacionais, biólogos, biomédicos, farmacêuticos, odontólogos, fonoaudiólogos, psicólogos, assistentes sociais, profissionais da educação física (que atuam em unidades de saúde), médicos veterinários e seus respectivos técnicos e auxiliares. Também os profissionais de apoio, tais como recepcionistas, seguranças, trabalhadores da limpeza, cozinheiros e auxiliares, motoristas de ambulâncias e funcionários do sistema funerário que tenham contato com cadáveres potencialmente contaminados.
Só no Sistema Único de Saúde (SUS) do Brasil, há cerca de 3,5 milhões de trabalhadores5. Segundo a literatura6, há três vezes mais chances de profissionais da saúde contraírem o vírus da covid-19 do que a população em geral. Porém, a problemática foi além da questão física. O que dizer de profissionais que diante de tantas incertezas de uma nova doença, viram, constantemente, pessoas entrando, pessoas saindo dos serviços, tentando e, algumas, não conseguindo sobreviver? Assim, a saúde mental se tornou um dos maiores desafios para a ocasião aqui descrita.
SAÚDE MENTAL
A Organização Mundial da Saúde (OMS)7 já relatava que transtornos mentais, como ansiedade e depressão, afetavam 264 milhões de pessoas no mundo. Se a saúde mental já era um desafio em tempos supostamente normais, imaginemos com a situação pandêmica!
A pandemia teve como uma das principais características a imprevisibilidade, o que envolvia não sabermos se as medidas de segurança que seguíamos eram suficientes para evitar o contágio, passando pela incerteza de estarmos ou não contaminados, se seríamos vetores, se teríamos sintomas, se seríamos internados, se sobreviveríamos, enfim, um fator provatório para demandar ansiedade e potencializar a depressão.
Como parte de uma das abordagens psicológicas mais utilizadas atualmente, por sua eficácia8, o modelo cognitivo de Beck9 contribui no entendimento de que cada pessoa pode interpretar a situação da pandemia de maneira diferente, uma vez que "não é a situação em si que determina o que a pessoa sente, mas como ela interpreta uma situação"9 (p. 50), e que, dessa forma, o pensamento de um indivíduo influenciará suas emoções e seu comportamento.
Portanto, compreende-se que dar voz a cada trabalhador, para entender quais pensamentos permearam sua mente e quais estratégias, em meio ao caos pandêmico, utilizaram para lidar com o sofrimento psicológico, seria um dos caminhos para patentearmos recursos psicológicos à saúde mental dos trabalhadores.
MÉTODOS
Advindo do recorte de uma pesquisa realizada com 56 participantes, de uma amostragem aleatória e diversa, este estudo concentrou-se nas narrativas apenas daqueles que se classificavam como profissionais da saúde. Nesse caso, foram 14 participantes, de ambos os sexos, computando três homens (dois médicos e um farmacêutico) e 11 mulheres (uma médica, uma residente, cinco enfermeiras, uma biomédica, duas psicólogas e uma estagiária de psicologia), sendo dez de pele branca e quatro de pele parda, com idade entre 25 e 62 anos, de diferentes cidades do Brasil: São Luís (estado do Maranhão) e Araras, Limeira, Rio Claro e Campinas (estado de São Paulo). O critério adotado foi a escolha de participantes que estavam realizando atividades laborais na área da saúde durante a pandemia e que tinham disponibilidade para participação on-line.
A pesquisa foi realizada entre agosto e setembro de 2020, por meio de grupo focal, via videochamada, no Google Meet, empregando-se a observação participante e a entrevista semiestruturada no trabalho de campo. As narrativas foram resultantes de dois encontros de até 1 hora e meia cada, sendo o primeiro fala livre e perguntas exploratórias da experiência na pandemia; e o segundo, um encontro hermenêutico, de aprofundamento e validação das narrativas elaboradas sobre o conteúdo da primeira reunião (p. 5)10.
A narrativa hermenêutica torna-se uma aliada na exploração e na busca dos sentidos do que fora vivenciado pelos profissionais participantes deste estudo. Segundo Ricouer11, a narrativa é uma operação mediadora entre a experiência viva e o discurso.
As investigações das narrativas foram realizadas por meio da análise de conteúdo12, adotando, conforme Minayo13, as seguintes etapas: a primeira foi a pré-análise do material coletado, com o exercício da leitura flutuante e da elaboração do corpus textual, sendo que a pesquisadora se atentou para os objetivos iniciais, com leituras do material coletado. A segunda etapa foi a exploração desses materiais, com busca ativa das principais expressões e seus significados e dos principais atores das narrativas, com seleção das categorias analíticas. Na última etapa, houve a elaboração do tratamento dos resultados, bem como suas interpretações.
Foi realizado, virtualmente, o aceite, pelos participantes, do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, após lhes ser apresentado o projeto pesquisa, o qual fora, anteriormente, submetido ao Comitê de Ética em Pesquisa em Seres Humanos da Universidade de Campinas e por ele aprovado sob o CAAE 34443420.5.0000.5404.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
Mediante as principais falas dos trabalhadores da saúde com relação à vivência do momento pandêmico, por meio da análise de conteúdo, pudemos identificar três macrocategorias, a saber:
O PROFISSIONAL ENQUANTO PACIENTE (VIVÊNCIA DA DOENÇA)
A constante exposição ao vírus no trabalho e, consequentemente, ter a condição de suspeita da doença já trazia um sofrimento tanto quanto a própria condição de estar doente de fato, conforme cita P5: "Fazia teste a cada 15 dias, até que um dia deu positivo".
Ambas as situações, suspeita ou contágio, por vezes eram suficientes para trazer consigo a necessidade de severas restrições do contato familiar e de amigos, como no caso de uma das mães participantes, cujo filho pediu: "Mãe me dá um beijo, me dá um abraço de presente de aniversário", mas a resposta teve de ser: "Eu não posso, filho, tem que esperar o resultado... Isso me deixava triste" (P14).
Para certas pessoas, se contaminar "era apenas uma questão de tempo" (P5). Alguns que passaram pela doença com maior agravamento descreveram um sofrimento psicológico mais intenso, uma vez que, devido à própria experiência com os casos que acompanharam no trabalho, já tinham ciência do que estaria por vir: "Eu via como é que era o processo da intubação na UTI. Eu disse: vão me entubar, é horrível, eu não vou... eu perdi muitos amigos, esposa de colegas de trabalho..." (P6). "Aquela taquicardia ficava mais acentuada. Eu tinha muito medo de morrer... eu trabalho na área da saúde, eu já tenho conhecimento do que pode acontecer" (P9).
De sintomas leves como "só uma cefaleia" (P5) até "uma internação, passando pelo vale de sombra da morte" (P6), a doença foi vivenciada em diferentes intensidades pelos participantes. Dos 14 entrevistados, 50% já haviam sido contaminados e 100% já haviam sido isolados devido à suspeita de covid-19. Mesmo para os que já haviam passado pela doença, ficava a insegurança de que poderiam passar por tal experiência novamente, na incerteza de que pudesse ser de uma forma ainda pior.
O EXERCÍCIO DA FUNÇÃO E A LINHA TÊNUE DO CUIDADO E DA TRANSMISSÃO
Apesar de os profissionais da saúde terem notoriedade em seu importante papel, por serem linha de frente do combate à covid-19, tal visibilidade logo se tornou ofuscada pelos perturbadores pensamentos de que sua condição de trabalho poderia também ser um risco e que, caso estivessem contaminados, possivelmente poderiam contagiar as pessoas com as quais viessem a ter contato, conforme expressa P7: "A maior preocupação é se as pessoas que tiveram contato com a gente também tinham se contaminado". P5: "A preocupação não era de eu ser contaminada, mas, sim, a questão de contaminar os meus familiares". P2: "Fica preocupado com os pais, com a filha da gente, e isso é o que gera mais estresse".
As enfermeiras puérperas estavam preocupadas com o retorno ao trabalho, pois estariam sujeitas à exposição ao vírus e, consequentemente, seu bebê ficaria vulnerável à doença, assim como havia receio de o bebê ser privado da mãe, caso ela ficasse contaminada e precisasse se isolar, conforme expressa P10: "... e aí, se eu me contamino, quem cuida dele?". Essa situação de vulnerabilidade, assim como outras, requeria intervenção de políticas públicas, o que acabou ocorrendo somente no ano seguinte, ao ser aprovada a Lei 14.15114, de 12 de maio de 2021, que garantia o salário-maternidade desde o início do afastamento até 120 dias após o parto.
Observou-se que, unanimemente, os profissionais da saúde passaram por privação de contato com pessoas, tornando essa uma atitude de amor, o qual "tudo sofre, tudo espera, tudo suporta"15, desde ficar longe da família por algum tempo - segundo cita P3: "Eu não fui ver a minha família para evitar o contato" - até conviver sem se aproximar: "Não podia mais abraçar ninguém e ninguém me abraçar" (P6). Em alguns casos, sentiam preconceito, conforme cita P11: "No começo da pandemia, quando o hospital virou referência da COVID-19, eu senti muito preconceito. Senti até da família. Não poderia visitar alguns... olhares... as minhas amigas, algumas por brincadeira, outras não queriam me ver, por trabalhar no hospital".
Entretanto, a empatia e o cuidado entre os próprios profissionais foi ganhando espaço, de modo que se tornou uma preocupação voltar imediatamente do afastamento, devido à sobrecarga de trabalho para os demais, conforme relatou P5: "Mais difícil, psicologicamente, não tem sido o fato da doença em mim, até porque eu me recuperei, [mas é] saber que eu precisava voltar logo para o trabalho, porque está um caos! Os colegas estão extremamente sobrecarregados, ansiosos. Mais um combatente fora do combate".
Segundo uma pesquisa da Universidade de São Paulo (USP)16, seis em cada dez profissionais da saúde na linha de frente do combate à COVID-19 estavam em sofrimento mental. Uma das causas era justamente a sobrecarga de trabalho provocada pela pandemia, outra, o medo da contaminação pelo coronavírus e problemas organizacionais das instituições de saúde, como a falta de leitos para internação e de equipamentos de atendimento e segurança individual.
Tal exposição, em meio a tantas dificuldades, pode levar os profissionais ao adoecimento psíquico17. Engolir o choro tornou-se sinônimo de resiliência mediante tão dura realidade que esses profissionais comumente enfrentavam em seu dia a dia: "Cuido dos que vão para a UTI. Estou vendo colegas saindo do quarto chorando. Às vezes, a gente está atendendo paciente, todo encapotado, e daí a gente ouve a pessoa perguntando: Eu vou sobreviver? Eu tenho alguma chance? Às vezes, a gente tem que engolir o choro e parecer positivo: você vai sair" (P5).
RELAÇÃO DE ENFRENTAMENTO E SAÚDE MENTAL
Para os trabalhadores da saúde, enquanto "linha de frente", o "ficar em casa" não foi uma opção. Pelo contrário, tiveram de buscar estratégias para enfrentar esse inédito desafio, e pelas narrativas, pudemos identificar que foi necessário encontrar algumas estratégias que contribuíram para preservar a saúde mental desses trabalhadores durante sua atuação profissional nesse período pandêmico.
PRÁTICAS PREVENTIVAS E POLÍTICAS PÚBLICAS
Alvo de críticas, as iniciativas do governo, desde o âmbito municipal até o federal, trouxeram consigo seus impactos, como foram as recomendações de práticas preventivas, o uso da máscara, do álcool em gel, o distanciamento (manutenção de uma distância espacial) e o isolamento social (separação de pessoas com suspeita ou de doentes).
Os participantes sentiram necessidade de um respaldo maior, por meio de "políticas públicas mais eficazes" (P8), principalmente com a questão do isolamento, conforme cita P5: "Começou cedo demais... e agora que o caos está instalado... que é hora de a gente fechar...estão abrindo. Eu, como profissional de saúde, fico desesperada, enlouquecida!".
Maunder18 escreveu, em um editorial, que o impacto psicológico em sobreviventes do surto, em 2002, da severe acute respiratory syndrome (SARS), embora grave, não foi considerado uma catástrofe em saúde mental. Isso foi possível, principalmente, pelo fato de o vírus ter sido contido em poucas semanas e de as pessoas não transmitirem a doença quando assintomáticas. As medidas de restrição social eram brandas e a amplitude do surto ficou limitada dentro de alguns países, minimizando, assim, o alcance de consequências mais graves sobre a saúde mental das pessoas.
As práticas preventivas, enquanto estratégias de enfrentamento coletivo, dependiam dos cuidados individuais: "A gente toma todas as precauções possíveis para evitar o contágio nosso e para retransmissão no hospital, todas as precauções são tomadas, desde a entrada do paciente" (P1) e "Acho que todo mundo acabou tendo um ritual de cuidados. Chegava em casa, tirava a roupa, que são um pouco contaminadas, né, já ia direto para máquina, eu já ia direto para o banho... estou usando máscara sempre" (P3).
Surge, para esses profissionais, a necessidade de serem assistidos, e em alguns lugares, foram adotados programas específicos de acolhimento aos profissionais da saúde, conforme menciona P8 (psicóloga): "A gente fazia mais escuta por telefone. Foi implantada, no hospital, uma rede de escuta". A escuta por telefone, ou até mesmo a videochamada, foi uma das medidas adotadas como estratégia de auxílio à promoção da saúde mental. Inclusive o Ministério da Saúde19, no período de maio a setembro de 2020, disponibilizou o projeto TelePSI, um serviço de teleconsulta psicológica, a profissionais da saúde.
Dados estatísticos da Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS)20 mostram que a pandemia da covid-19 desencadeou uma prevalência de 25% de ansiedade e depressão em todo o mundo, o que torna necessário encarar a nova realidade por meio do desenvolvimento de estratégias para enfrentar tal condição.
ROTINAS E CUIDADOS COM A SAÚDE MENTAL
A situação pandêmica provocou significativas mudanças em nosso dia a dia, não apenas trazendo modificações de rotina, mas, também, revelando a necessidade de passar a tê-las. "... não ficar só assistindo os noticiários... Estabeleci rotinas para que a mente não fique ociosa, nem pensando ou se preocupando demais" (P13).
Chama a atenção o cuidado com o excesso de informação ou, até mesmo, a desinformação, tendo sido importante filtrar o que se ouvia e priorizar o que se conversava, como forma de proteger a mente. Os profissionais da saúde estavam constantemente atualizados sobre a doença pelo que vivenciavam no trabalho, o que não deixava de ser um reflexo do que estava acontecendo no mundo todo. "Tirar, um pouco, foco só das notícias ruins" (P14). "Ajudou que a gente não fica vendo documentário. A informação que eu tenho é informação do meu trabalho, do hospital" (P7).
P2, casado com P5, ambos médicos, assim se expressa: "A nossa estratégia é tentar, no momento que a gente está em casa, não falar sobre isso. Na maioria das vezes a gente não consegue".
Foi mencionado, enquanto fator que alivia o estresse, ter hobbies e praticar atividades físicas, por exemplo. "Atividades dos hobbies, tudo aquilo que consegue trazer alguma felicidade e algum equilíbrio" (P8). "A atividade física, fazendo em casa, tirou um pouco da ansiedade. A gente vê morte todo dia, então gera uma ansiedade, até uma depressão. Amigas minhas estão com depressão no hospital por não querer mais trabalhar. Tem que cuidar muito da saúde mental" (P11).
Um estudo21 indicou que as equipes de profissionais de saúde que prestavam assistência aos pacientes com covid-19 apresentaram elevados níveis de ansiedade e estresse.
Olhar não só de forma negativa, mas buscar possíveis oportunidades em meio às dificuldades também seria uma maneira de amenizar a angústia na situação. "O isolamento foi tranquilo. Para mim, não teve nenhuma gravidade. Ficar em casa, aliás, para quem nunca ficou, foi bem gostoso" (P5). "O isolamento para mim não foi pior, porque eu estava com a minha família. Então, o maior medo era que alguma coisa acontecesse com as crianças" (P7). "São momentos junto à família" (P13). "Mais importante em nossas vidas é Deus e a família, porque se não fosse minha família, se eu tivesse ficado em isolamento [sozinha], eu acho que eu teria morrido" (P6).
Percebe-se que o estar com a família foi um fator aliado à saúde mental.
A FÉ
Pensar em coisas que lhes "traziam esperança"19 foi um fator encorajador para o confronto das tenebrosas adversidades do trabalho de linha de frente. "A grande questão é lidar com a emoção, a parte mais difícil de adaptação às pessoas. Como forma de enfrentamento, a gente tem fé... tem confiado mesmo em Deus, a gente tem feito as nossas orações..." (P4). "Foi a fé mesmo, o amor da família" (P6).
"A saúde mental está atrelada como você organiza o que está a sua volta interiormente... tentar ser positivo. Como eles falaram da importância da fé! Acreditar que virão dias melhores" (P8). "A maior parte das pessoas está deixando o seu sentimento ser abalado. Muitas estão ao extremo de estresse... tenho aconselhado uma saúde emocional mais equilibrada" (P4). "... colegas me ligando, às vezes, querendo uma escuta, eu acolhi todo mundo, mesmo não estando tão bem... todos à minha volta pegaram COVID-19, colegas de trabalho, família. Tentei sempre manter e passar a positividade de que as coisas irão dar certo" (P8). "Usei como estratégia a minha fé em Deus, a fé que tem alguém que tem uma capacidade de cuidar de nós e nos dar a capacidade de passar por esse momento tão difícil" (P5). "... acreditar que Deus que cuida, porque você se vê numa situação onde a gente não tem controle" (P7).
Um estudo22 com 19 artigos revelou que enfrentamentos religiosos e confiança em Deus estão fortemente correlacionados com menor nível de estresse. Também estão relacionados à promoção do bem-estar e preveem uma remissão mais rápida dos problemas de saúde mental. Pudemos evidenciar, pelas várias falas dos participantes, que a espiritualidade foi um fator preponderante para um melhor enfrentamento da pandemia.
APRENDIZAGENS
A cada dia, as experiências trouxeram maior conhecimento e contribuição para lidar com as dificuldades advindas da pandemia. "A gente aprendeu muito já sobre a doença, já tem uma qualidade técnica maior do que quando a pandemia começou" (P5). "... espero que não ocorra novamente, mas se ocorrer, nós estaremos mais preparados para agir e orientar os pacientes sobre todas as condutas. Mas, o que eu acho que poderia ter sido diferente é o preparo dos políticos em medidas públicas mais certeiras" (P5). "Gostamos muito do depoimento do pessoal. Temos aprendido nessa pandemia que devemos valorizar o outro, no trabalho um depende do outro... a pandemia nos igualou" (P4).
Por fim, a própria experiência de participar do grupo focal da pesquisa trouxe contribuições, já que ouvir um ao outro e compartilhar as vivências, além de trazer sentido à tal experiência, também produziu o entendimento de que, mesmo fazendo nossa parte, precisávamos uns dos outros para enfrentar a pandemia.
CONCLUSÕES
Neste estudo, trouxemos ao conhecimento, por meio de uma amostragem, as vivências dos trabalhadores da saúde, sendo que as principais preocupações desses profissionais foram no sentido de contrair o vírus e, consequentemente, contagiar seus familiares, assim como ficar afastados e sobrecarregar os colegas com as demandas, além da apreensão de perdas por morte, com a doença de colegas de trabalho ou familiares destes.
Destacaram-se, no enfrentamento individual, as rotinas e os cuidados, a fé e as aprendizagens, e no âmbito coletivo, sobressaíram-se, como formas de enfrentamento, as práticas preventivas, como o uso de máscara, de álcool em gel, o distanciamento e o isolamento social.
Entende-se que existem, ainda, diversos desafios à coprodução de estratégias de enfrentamento ao momento pandêmico quanto a favorecer a saúde mental do trabalhador. A exemplo, a oportunidade de escuta desses profissionais, produzindo, assim, sentido, empatia e reconhecimento. Importante, ainda, é o reforço à educação em saúde nas medidas preventivas para com a população e o incentivo às redes de apoio ao trabalhador.
Conclui-se, portanto, que o relato da experiência de cada trabalhador torna-se enriquecedor ao conhecimento em nossa pesquisa, ao mesmo tempo em que demonstra que há muito a ser explorado.
AGRADECIMENTOS
O presente trabalho foi realizado com a cooperação dos participantes da pesquisa e o apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (Capes) - Código de Financiamento 001.
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Recebido em
25 de Novembro de 2022.
Aceito em
27 de Fevereiro de 2023.
Contribuições das autoras: DMB foi responsável pela concepção do estudo, investigação dos dados, tratamento de dados, análise formal, redação – esboço original e revisão & edição do texto. RTOC participou do tratamento de dados, investigação, validação, redação – revisão e edição. Todas as autoras aprovaram a versão final submetida e assumem responsabilidade pública por todos os aspectos do trabalho.
Fonte de financiamento: Bolsa da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior
Conflitos de interesse: Nenhum