145
Visualizações
Acesso aberto Revisado por Pares
RELATO DE CASO

Integração de Trabalhadores Portadores de Deficiência em uma Instituição Bancária: Apresentação de Dois Casos

Integration of Workers with Disabilities in a Banking Institution: Two Cases Report

Nilton Farias Pinto1; Leonardo Monteiro de Castro Silva2

RESUMO

São apresentados os casos de duas pessoas portadoras de graves deficiências, uma delas com ausência total dos membros inferiores e a outra com perda total da visão (amaurose secundária), admitidas e integradas ao trabalho bancário a partir de 1999, quando o Banco do Brasil passou a publicar seus editais de concurso com vagas reservadas para pessoas com deficiência, conforme determina a lei. Os dados reforçam a importância do trabalho no processo de cidadania e os reflexos do respeito à dignidade, à igualdade, à autonomia e à solidariedade nas relações trabalhistas. Não apenas o trabalhador se beneficia com a abertura da empresa a sua inclusão. Todo o ambiente de trabalho se modifica com a percepção de que deficientes somos todos, em algum grau, mesmo aqueles que se consideram normais.

Palavras-chave: Pessoas Portadoras de Deficiência; Readaptação ao Emprego; Trabalhadores; Local de Trabalho; Responsabilidade Social.

ABSTRACT

In this work, the cases of two persons with serious disabilities are reported, one of them with total absence of the inferior members and the other one with total loss of vision (secondary amaurosis). They were admitted and integrated into banking work in 1999, when the State Bank 'Banco do Brasil' started to publish its job offers with vacancies specially reserved for people with disabilities, as determined by law. This report strengthens the importance of labor in the citizenship process and the consequences of respecting dignity, equality, autonomy and solidarity in working relations. The worker is not the only one who benefits from his acceptance in the company. The entire work environment benefits from the perception that all of us have disabilities to some extent, even those who consider themselves normal.

Keywords: Disabled Persons; Employment, Supported; Workers; Work Place; Social Responsibility.

INTRODUÇÃO

O papel da área de Medicina e Segurança do Trabalho no processo de inclusão de pessoas com deficiência no mercado de trabalho é fundamental para o compromisso ético das empresas na promoção da diversidade, no respeito à diferença e na redução das desigualdades sociais.

Segundo a ONU, mais do 600 milhões de pessoas, aproximadamente dez por cento da população total do planeta, são portadoras de alguma deficiência.1 Historicamente marcadas pela exposição a várias formas de discriminação e exclusão social, a inclusão das pessoas com deficiência começou a ser discutida, em termos legais, a partir de 1948, com a Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão.2

No Brasil, o Decreto nº 3.298, de 20.12.99, da Presidência da República3, estabelece os critérios de identificação e participação desses trabalhadores no universo laboral do país. O processo de garantia dos direitos humanos às pessoas com deficiência é lento e inconstante, mas está ganhando espaço em todos os sistemas sociais e econômicos.

O objetivo deste trabalho é apresentar dois casos de inclusão trabalhista e integração de pessoas portadoras de graves deficiências que conseguiram boa adaptação do posto de trabalho às suas necessidades de compensação das limitações físicas em uma instituição bancária. Em consonância com o tema escolhido para este ano, pelas Nações Unidas, para a celebração do dia internacional das pessoas com deficiência - Vox Nostra, a nossa voz4 -, este trabalho se propõe a ouvir trabalhadores portadores de deficiência sobre sua própria inclusão trabalhista e social.

 

MATERIAL E MÉTODOS

Foram estudados as análises ergonômicas dos postos de trabalho dos dois empregados, sujeitos deste estudo, elaboradas pela equipe do Sesmt-SP com o apoio da área médica da Gepes-SP.5,6 Realizou-se ainda entrevistas com esses trabalhadores e seus respectivos chefes imediatos objetivando a avaliação do sentido de realização com o trabalho na autopercepção e na percepção heteróloga das pessoas relacionadas à tarefa. A utilização dos dados foi permitida por meio de declaração de consentimento livre e esclarecido dos envolvidos.

 

RESULTADOS

Dos cerca de 1.200 funcionários portadores de deficiência que trabalham no Banco do Brasil, apresentamos dois trabalhadores com graves deficiências e várias limitações laborativas para o exercido de atividades que requerem, em condições gerais, bastante atenção, agilidade e presteza no atendimento aos clientes. O primeiro caso, um rapaz de 27 anos, quatro dos quais trabalhando nessa empresa, apresenta agenesia total dos membros inferiores. O segundo caso, uma jovem, também de 27 anos, com total deficiência visual (amaurose secundária) adquirida na juventude. Apresentamos, neste estudo, um pouco dessas duas histórias de sucesso e superação das dificuldades.

Caso nº 1

JAB, sexo masculino, 27 anos, natural do Estado de São Paulo, Brasil. Escolaridade: concluiu o segundo grau (atual ensino médio) e cursou também informática, em nível técnico, de forma que se encontra bastante familiarizado com os diversos equipamentos de informática que utiliza no trabalho bancário.

Possui, como limitação física, dificuldade de locomoção devido à agenesia total dos membros inferiores. Demais órgãos e segmentos do corpo, sem alterações.

O funcionário informa que tomou conhecimento do concurso para ingresso na empresa em 1999, por meio de uma prima que estava se preparando para o evento. Na oportunidade, foi bastante incentivado por sua tia e passou, então, a vislumbrar nisso uma oportunidade de ingressar no mercado de trabalho.

Não necessitou de recursos especiais para realização das provas do concurso. Relata: "A única coisa foi que, no local em que prestei o concurso, havia uma sala no andar térreo para que deficientes físicos não precisassem subir escadas." Prossegue relatando: "No meu caso, em particular, não havería a necessidade de sala no andar térreo, pois consigo subir escadas sem problemas, porém é muito bom ver que existe uma preocupação no que diz respeito à melhor acomodação e atendimento ao deficiente, pois também fui muito bem atendido e orientado no local onde fiz a prova."

JAB foi aprovado no certame e passou a ocupar uma das vagas reservadas aos portadores de deficiência, conforme determina o Decreto nº 3.298/99 da Presidência da República.3

Submetido ao exame médico admissional em 06.04.00, foi considerado apto, porém com a recomendação de avaliação .ergonômica do posto de trabalho e as devidas adaptações previamente a sua posse.

O Sesmt-SP realizou a análise ergonômica do posto de trabalho na agência do Banco em Vila Prudente (SP) e acompanhou as reformas e adaptações propostas no estudo, com a finalidade de facilitar os acessos e locomoções do novo, e especial, funcionário.

No período destinado ao contrato de experiência (90 dias), JAB, que até então utilizava skate nas suas locomoções, recebeu uma cadeira de rodas da empresa. Transcorrido esse período, voltou a utilizar o seu skate e argumenta, quando indagado sobre essa preferência: "Eu prezo muito pela minha liberdade de movimentos. Não gosto de ficar pedindo ajuda quando não é necessário. O skate facilita muito nesse sentido, pois com a cadeira de rodas, para entrar e sair do carro, por exemplo, teria que ficar dependendo de outras pessoas para retirá-la do porta-malas."E conclui convicto: "Desde pequeno ando de skate. Começou como brincadeira de moleque e acabei me adaptando muito bem com ele."

Atualmente, JAB trabalha como caixa-executivo na agência do Banco do Brasil em Vila Prudente (SP) e é muito estimado por seus colegas. A dependência passou por todas as reformas e adaptações necessárias ao seu exercício laboral: instalações sanitárias foram reformadas e adaptadas, rampas para passagens de níveis e portas com abertura para ambos os sentidos foram construídas. Na opinião do administrador da dependência, o funcionário apresenta bom desempenho laboral. Informa ainda que a experiência do convívio laborativo da equipe com pessoa com deficiência foi tão positiva que se tornou determinante para a admissão de um novo funcionário com deficiência (que usa cadeira de rodas) na agência, que possui um total de 28 funcionários.

Caso nº 2

AMC, sexo feminino, 27 anos, natural do Estado de São Paulo, Brasil, concluiu o ensino médio (antigo segundo grau) e iniciou curso superior de Psicologia.

Aos 7 anos de idade, foi diagnosticado quadro de diabetes juvenil na funcionária que permaneceu sob controle medicamentoso e por meio da utilização de insulina. Há cerca de quatro anos apresentou, como conseqüência da diabetes, quadro de retinopatia acompanhada de catarata de início súbito e evolução muito rápida, culminando com a perda total da visão em ambos os olhos aos 21 anos de idade.

Não obstante essa nova condição visual, desenvolveu boa adaptabilidade e reaprendeu a cuidar de si e das atividades da vida diária como alimentar-se, vestir-se, assear-se, dentre outras. Desenvolveu também novas aptidões e aprendeu outras formas de comunicação como a leitura em Braile e utilização de bengala para locomover-se nas ruas.

Em 2002, tomou conhecimento da realização de concurso para o Banco do Brasil. Entrar para esta empresa era um antigo sonho seu, pois a considerava muito sólida, forte e que poderia proporcionar-lhe estabilidade e segurança no emprego, associada à boa qualidade no ambiente. Para fazer a prova, utilizou pessoa "ledora" indicada pela empresa responsável pelo concurso.

Foi aprovada. Em 2003, tomou posse na Gerie-SP, em uma das vagas reservadas para os portadores de deficiência, conforme estabelece o Decreto nº 3.298/99, da Presidência da República.3

A análise ergonômica do posto de trabalho ficou também a cargo do Sesmt-SP a exemplo do caso anteriormente relatado. Dentre outras adaptações do posto de trabalho, houve necessidade de instalação de programas especiais de computadores e dispositivos facilitadores da visualização, sintetizadores de voz, leitores de tela, fones de ouvido, dispositivos e programas auxiliares para a escrita, entre outros.

Houve ainda reorganização no layout da dependência, treinamento e recomendações aos funcionários para evitar situações de risco para a deficiente visual, tais como deixar portas entreabertas na área de circulação da funcionária, modificar o posicionamento de móveis e utensílios.

Outras medidas adotadas foram: cientificá-la de quaisquer barreiras físicas no interior da dependência, removendo-as sempre que possível do seu trajeto, tais como degraus e plataformas, portas entreabertas, armários, cadeiras, mesas, vasos de plantas, entre outros. A boa conservação do piso, sistemas an-tiderrapantes, corrimões e escadas internas. O cuidado com tampas de caixas de inspeção, grelhas e bueiros danificados no trajeto externo foi adotado para sua proteção.

Atualmente, trabalha como escrituraria responsável pelo controle de abastecimento e manutenção dos terminais bancários de saque. Fez alguns cursos como "Oficina de Gestão de Carreira", "Curso para Palestrantes e Apresentadores", "Excelência Profissional", entre outros. Tem uma expectativa positiva quanto à sua ascensão na empresa e diz que "a empresa não é a responsável integral pelo nosso crescimento no trabalho, mas acho que estou conseguindo isso".

Na opinião do gerente, com a chegada de AMC na dependência, o ambiente passou por um período relativamente curto de adaptação. Em seguida, os colegas passaram a ser mais cuidadosos com a organização do layout interno. Informa ainda que "AMC é uma funcionária educada, trata os colegas com respeito e recebe de volta o mesmo tratamento. Em alguns momentos ela é extremamente divertida fazendo chacota de si mesma e nos levando a determinadas reflexões sobre nossas dificuldades diárias. Bem-humorada, sempre disposta, mente aberta, está sempre procurando saber os caminhos para o sucesso profissional". O gerente conclui suas observações com uma frase de impacto: "AMC chegou para mostrar que os deficientes somos nós."

 

COMENTÁRIOS E CONCLUSÕES

O relato dos funcionários entrevistados reflete uma satisfação e adaptabilidade ao trabalho que devem ser reconhecidos. Mesmo se tratando de pessoas portadoras de deficiências graves, percebe-se um otimismo muito grande em relação às suas perspectivas profissionais e pessoais. Ficou evidente que, com as devidas adaptações ergonômicas, é possível, e quase certo, que funcionários com deficiências realizem as tarefas bancárias com sucesso. As dificuldades identificadas não se remetem à incapacidade resultante da deficiência, mas à inexistência de recursos instrumentais e tecnológicos no ambiente de trabalho completamente adaptados à pessoa.

A organização do processo seletivo foi elogiada. A empresa contratada propiciou todos os recursos disponíveis e necessários para a realização da prova, preocupando-se com o local apropriado, fiscais treinados ao atendimento de pessoas com deficiência, além de mobiliário e equipamentos adequados.

O Banco foi descrito, pelos próprios candidatos, como uma boa empresa para se trabalhar. A segurança e estabilidade no emprego, preocupação dos entrevistados quanto à empregabilidade, são considerados fatores que criam boas perspectivas na ascensão profissional. Diversos treinamentos são oferecidos para o aprimoramento profissional.

Em relação ao ambiente de trabalho, houve uma alteração para receber os novos funcionários, com orientações e recomendações médicas e ergonômicas, propiciando uma melhora qualitativa das condições de trabalho e relações sociais. É também importante o acompanhamento, pelos órgãos de gestão de pessoas da empresa, do desempenho dos funcionários.

Os dados reforçam a importância do trabalho no processo de cidadania e os reflexos do respeito à dignidade, igualdade, autonomia e solidariedade nas relações trabalhistas. Não apenas o trabalhador se beneficia com a abertura da empresa à sua inclusão. Todo o ambiente de trabalho se modifica com a percepção de que deficientes somos todos em algum grau, mesmo aqueles que se consideram normais.

Este estudo mostrou-se fundamental para o entendimento de que o ambiente laboral é fruto da construção e uso de diversos instrumentos supostamente adaptados a todos os homens. Em um dado momento, quando a maioria das pessoas se acostuma a utilizá-los, cria-se a idéia de que o homem é que deve adaptar-se a eles. O bom desempenho nas atividades prescritas, conforme constatado, fica condicionado à acessibilidade dos recursos e instrumentos disponíveis às pessoas portadoras de deficiências que, como seres humanos, compartilham dos valores universais de dignidade, autonomia, solidariedade e igualdade.

 

REFERÊNCIAS

1. Quinn G, Degener T. Human rights and disability: the current use and future potential of United Nations human rights instruments in the context of disability. New York and Geneva: United Nations; 2002. [Cited 2004 Feb 9]. Available from: http://www.unhchr.ch/html/menu6/2/disability.doc.

2. Organização das Nações Unidas - ONU. Declaração universal dos direitos dos humanos. Nações Unidas: 1948. [Acesso 09 fev. 2004]. Disponível em: http://www.unhchr.ch/udhr/lang/por.pdf.

3. Lima NM. Pessoa portadora de deficiência: legislação básica federal. Brasília: Ministério da Justiça: 2001 (Série Legislação em Direitos Humanos. Subsérie Pessoa Portadora de Deficiência; 1).

4. Disabled People's International - DPI. Dia internacional das pessoas com deficiência: guia de recursos. Winnipeg: DPI; 2003. [Acesso 10 fev. 2004]. Disponível em: http://www.dpi.org/en/resources/documents/Portuguese.doc.

5. Serviço Especializado em Segurança e Mediana do Trabalho da Empresa no Estado de São Paulo. Análise ergonômica do posto de trabalho; JAB, agência Vila Prudente - SP [Laudo técníco]. São Paulo: GERIE/NUSEG/Sesmt-SP; 2000 jun. 22 p.

6. Serviço Especializado em Segurança e Medicina do Trabalho da Empresa no Estado de São Paulo Análise ergonômica do posto de trabalho: AMC, Gerie/Semat-SP. [Laudo têcnico]. São Paulo: GERIE/NUSEG/Sesmt-SP; 2003 abr. 20 p.


© 2024 Todos os Direitos Reservados