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ARTIGOS ORIGINAIS

Sequestros de bancários e seus impactos psicossociais e na saúde do trabalhador

Kidnapping of bank employees and its psychosocial impacts on their health

Graziella Ferrari de Medeiros; Sérgio Roberto de Lucca; Ana Carolina Lemos Pereira; Juliana Luporini do Nascimento

RESUMO

CONTEXTO: Essa pesquisa tem como objetivo analisar a história de vida e trabalho dos bancários vítimas de sequestro e suas consequências psicossociais e laborais por meio da investigação das características da organização do trabalho bancário.
OBJETIVO: Compreender, a partir da perspectiva dos bancários vítimas, o que significou a experiência do sequestro e apresentar propostas de promoção de saúde para essa população em risco.
MÉTODO: Trata-se de uma pesquisa qualitativa a partir de entrevistas em profundidade com quatro bancários vítimas de sequestro. As entrevistas foram transcritas pela pesquisadora com auxílio de um programa conhecido como VoiceNote II.
RESULTADOS: Os resultados obtidos demonstram o impacto psicossocial negativo do sequestro na vida das vítimas, agravado pelo inadequado manejo dessas ocorrências por parte dos bancos, intensificando as manifestações de transtornos psíquicos após o evento traumático.
CONCLUSÃO: Este estudo espera contribuir para discussões com os atores sociais implicados e na revisão das formas de gestão e organização do trabalho dos bancos com vistas à preservação da segurança e saúde dos bancários. A gravidade desse tipo de violência ao trabalhador deveria também receber maior atenção da saúde e segurança públicas.

Palavras-chave: saúde do trabalhador; sequestro; transtornos de estresse pós-traumáticos; saúde mental.

ABSTRACT

BACKGROUND: The aim of the present study was to analyze the life and work history of bank employees who were victims of kidnapping and the psychosocial and work-related consequences of this event by investigating the characteristics of the organization of bank work.
AIMS: To understand what the experience of being kidnapped meant to the victims from their perspective and to describe proposals for health promotion targeting this high-risk population.
METHOD: The present qualitative study was based on in-depth interviews conducted with four bank employees who were kidnapping victims. The interviews were transcribed by the investigator using program VoiceNote II.
RESULTS: The results demonstrate the negative psychosocial impact of kidnapping on the victims' lives, made even worse by the bank inadequate handling of these occurrences, resulting in intensification of the manifestations of psychic disorders after the traumatic event.
CONCLUSION: The authors hope to contribute to discussions with the social actors involved, as well as to the revision of management and organization of work in banks so as to preserve the safety and health of bank employees. The severity of this type of violence against workers should also receive greater attention from public health and safety agencies.

Keywords: occupational health; kidnapping; stress disorders, post-traumatic; mental health.

INTRODUÇÃO

A atividade humana que chamamos trabalho compreende a forma pela qual o homem apreende e se relaciona com o mundo, e representa também a práxis fundamental que confere especificidade ao homem em relação aos outros seres, já que para alguns autores é por meio do trabalho que a construção do mundo objetivo se realiza1. Uma construção efetivada por indivíduos ativos que, a partir da ação, estabelecem relações com o mundo, o que confere ao trabalho importância fundamental na constituição de sua saúde física e mental e tem elementos essenciais para a construção da identidade2.

O trabalho assume dinâmicas que favorecem ou prejudicam os aspectos coletivos e individuais de quaisquer tipos de atividades produtivas, podendo ser fonte de fortalecimento ou desgaste para a saúde3. Como aspectos coletivos que contribuem para o adoecimento mental do trabalhador, Azevedo e Lucca (2010)4 destacam a acentuada reestruturação produtiva, precariedade das relações de trabalho, intensificação do ritmo de trabalho, a exigência de polivalência e competitividade. No âmbito individual, apontam o medo de perder o emprego, as metas cada vez mais desafiadoras, e a impossibilidade de resistência (coping) que pode desencadear adoecimentos.

Com a vinda das novas tecnologias e as reestruturações produtivas, ocorrem maiores exigências da atividade mental e da responsabilidade individual, aumentando as tensões e a violência no trabalho, enfatizada pelo assédio moral realizado dentro das empresas5.

No Brasil, os transtornos mentais relacionados ao trabalho (TMRT) ocupam o terceiro lugar nos afastamentos da população economicamente ativa e contribuinte da Previdência Social6. Em 2013, o número de benefícios com afastamento do trabalho superior a 15 dias com diagnóstico do grupo de transtornos mentais e comportamentais (CID F) foi de 228.879 casos, distribuídos em benefícios previdenciários (216.191) e acidentários (12.688)6. Nesse último caso, cerca de metade (6.141 casos) foi associada diretamente aos trabalhadores do setor bancário6.

Para Seligmann-Silva (2007)7, o adoecimento também se manifesta sob os aspectos físicos e sociais como hipertensão, obesidade, sedentarismo, dependência química, transtorno de adaptação e conflitos interpessoais, incluindo familiares. As defesas contra o adoecimento em relação ao trabalho envolvem componentes biopsicossociais, e essa tentativa de adaptação requer que o trabalhador enfrente o processo de trabalho articulando resistência individual ao estresse e enfrentamento de conflitos políticos, sociais e organizacionais8.

A ideologia neoliberal aplicada às instituições financeiras modificou a relação capital-trabalho com a consequente precarização das relações trabalhistas, por meio da redução de salários, contratos de trabalho por tempo determinado e terceirização de atividades essenciais do setor, como, por exemplo, a segurança e o sistema de cobranças, estimulando os subempregos e limitações de direitos. Além disso, estabelece a competição nos ambientes de trabalho e permite a instrumentalização dos sujeitos9.

A partir do movimento de privatização dos bancos, nos anos 1990, destaca-se o enxugamento do quadro funcional no setor bancário privado, com demissões em massa e incentivos para a adesão ao Programa de Demissão Voluntária (PDV) nos bancos públicos, gerando uma onda de incertezas e medo9. Segundo dados da Federação Brasileira dos Bancos (FEBRABAN, 2011)10 sobre a evolução do emprego no setor, num período de 10 anos (1986 a 1996) foram eliminados 500 mil postos de trabalho. A consequência dessa política de privatização acelerada do setor foi desastrosa para os bancários. Nesse período registrou-se elevado índice de suicídio, verificado por Santos (2009)11. Entre 1996 e 2005 foram registrados 181 suicídios entre os bancários (143) e bancárias (38).

Dejours (1999)12 explica que existe uma naturalização da injustiça social, experimentada pelas pessoas como mal dos tempos modernos, imutável, como causalidade do destino. Com isso, o modo de gestão do trabalho passa a exercer forte pressão nos trabalhadores que acreditam que podem e tentam cumprir exigências absurdas gerando um inevitável sofrimento e banalizando a injustiça no trabalho13.

O cotidiano do bancário é um ambiente fértil para o assédio moral, gerador de "competitividade e sobrecarga" e atua por meio de estratégias organizacionais que exigem elevada carga psicoafetiva (autocontrole exacerbado, exigências de perfeição no desempenho, medo de perder o emprego e constantes ameaças em relação à carreira), além das pressões temporais quanto ao ritmo de trabalho, metas e prazos11.

Pesquisa, realizada por Maciel e colaboradores14, constatou que 60,72% dos 425 mil trabalhadores bancários estudados apresentavam tensão e preocupação excessiva, 42,14% transtorno do sono, 37,37%, dor crônica de cabeça, 33,4%, sensações desagradáveis no estômago, 4,37% referiram ideação suicida e 39% dos entrevistados relataram vivências constrangedoras no trabalho, principalmente relacionadas ao autoritarismo das gerências em relação ao excesso de tarefas e foco exagerado na produção.

Além da sobrecarga de trabalho, existe no setor bancário o risco de assaltos e sequestros com objetivo de obter dinheiro dessas instituições. Essa situação pode desencadear transtorno de estresse pós-traumático (TEPT) na vítima e culminar no afastamento do trabalhador, além de trazer sérios prejuízos emocionais para os colegas de trabalho envolvidos afetivamente e convivendo com o medo de virem a ser a próxima vítima.

O TEPT faz parte dos transtornos de ansiedade (DSM-IV), tendo como principais características a revivência do trauma, a "evitação" e hiperexcitabilidade mediante situações associadas à experiência traumática15. O estresse póstraumático pode ser incapacitante e grave. Cerca de 60% das vítimas diretas ou indiretas da violência correm risco de desenvolver algum transtorno emocional. Ferreira-Santos16 afirma que no caso de vítimas de sequestro, 97,5% apresentam algum tipo de transtorno psíquico compatível com o diagnóstico de TEPT.

Os dados disponíveis não discriminam a violência sofrida pelos bancários em assaltos e sequestros. A V Pesquisa Nacional de Ataques a Bancos, elaborada pela Confederação Nacional dos Vigilantes (CNTV) e pela Confederação Nacional dos Trabalhadores do Ramo Financeiro (CONTRAF) revelou que os ataques a bancos alcançaram 1.484 ocorrências em todo o País no primeiro semestre de 2013. Desses casos, 431 foram assaltos ou sequestros de bancários e vigilantes, consumados ou não, e 1.053 foram arrombamentos de agências17.

Lhuilier faz uma reflexão com base no Relatório do Conselho Econômico e Social da França, intitulado "Trabalho, violência e ambiente", chamando a atenção para a relação da Organização do Trabalho com os diversos tipos de violência, ou seja, agressões vivenciadas no trabalho18. Em busca de referências internacionais sobre o tema, observamos que as universidades italianas têm desenvolvido pesquisas com bancários vítimas de assalto e alertam sobre a escassez de estudos na área e concluem que o desenvolvimento de TEPT é comum aos bancários vítimas de assalto19-21.

O sequestro de bancários e seus familiares têm intensidade e duração de exposição à violência ainda mais prolongada do que os assaltos e é considerado um dos eventos mais traumáticos para o ser humano, podendo gerar consequências emocionais tão ou mais severas do que guerras e catástrofes naturais16.

Este estudo procurou compreender a psicodinâmica dessas ocorrências a partir da percepção de bancários vítimas, bem como se aproximar da vida desse trabalhador, de seus processos psicossociais e sua relação com o trabalho antes e após os sequestros. Procurou também identificar o direcionamento das organizações financeiras diante da violência emergida e suas consequências como importante desencadeador de transtorno mental relacionado ao trabalho.

 

MÉTODOS

Na perspectiva de analisar a dinâmica dos processos psicossociais e organizacionais que envolvem os sequestros de bancários, uma maior atenção foi dada à vivência desses profissionais nessa situação específica, buscando assim mesmo apreender como a violência impactou a vida deles e seus familiares, com destaque para a saúde física e mental.

Houve dificuldade para compor a amostra devido ao receio das vítimas em falar sobre o sequestro, seja pelo sentimento de exposição aos criminosos, por medo de represálias dos bancos ao falarem da condução do processo, ou ainda porque esse assunto é doloroso e aterrorizante22.

Para estudar o tema em profundidade e considerando a complexidade de sua dinâmica, optou-se pela metodologia qualitativa que "implica assumir que aquilo que interessa são as qualidades de um grupo ou relação social, que a intenção é compreender profundamente seu significado e que se abdica, portanto, da avaliação de seu grau de ocorrência na sociedade"23. Dessa forma, as informações oferecidas pelas entrevistas possibilitaram desvendar as percepções dos participantes sobre as características da profissão bancária, o sequestro relacionado ao trabalho e o contexto de vida após o evento.

Foram realizadas entrevistas de profundidade com bancários vítimas de sequestro. Essa investigação teve caráter exploratório, útil principalmente na abordagem de temas sensíveis em que existe pouco conhecimento sobre os mesmos24. O material foi compreendido por meio da análise de conteúdo, com intenção de apreender as experiências vivenciadas e sentidas pelos sujeitos no processo de trabalho, considerando as questões objetivas relacionadas às condições concretas de produção e as condições subjetivas do trabalhador para a sua realização. Os conteúdos das entrevistas tendem a ser valorizados à medida que são interpretados, envolvendo o contexto social e histórico sob o qual são produzidos24.

A amostra foi intencional e teve a participação de quatro bancários que possuíam acesso ao cofre da instituição bancária, sendo dois homens e duas mulheres, de bancos públicos e privados, que passaram pela experiência do sequestro no período compreendido entre 2012 e 201425.

Estabeleceu-se como critério de inclusão o período máximo de dois anos do evento traumático, considerandose os estudos clínicos de TEPT quanto à capacidade de "memória" vivenciada pelas vítimas.

Os sujeitos foram selecionados a partir da indicação do Sindicato dos Bancários de um município do interior de São Paulo ou pelo contato da pesquisadora, que trabalha no atendimento dessa população em outro município. As entrevistas duraram em média uma hora cada e foram realizadas no Centro de Referência de Saúde do Trabalhador (CEREST) do município.

A amostragem obtida com os entrevistados de ambos os sexos permitiu avaliar possíveis divergências na percepção do evento estudado a partir da perspectiva de gênero, buscando entender se há diferenças quanto à relação entre as percepções acerca do sequestro e a família; da ocorrência do sequestro e a concepção da carreira profissional. Procurou-se incluir na amostra os trabalhadores de bancos públicos e privados, possibilitando uma análise mais abrangente das relações entre o gerenciamento e o cuidado prestado às vítimas pelas respectivas instituições financeiras.

Os sujeitos foram identificados pela codificação B1, B2, B3 e B4, conforme segue:

• B1: 43 anos de idade, separada, mãe de 2 filhas, graduada em matemática, há 13 anos empregada em um banco público, trabalha desde os 14 anos de idade e refere a si mesma como muito responsável, determinada e batalhadora.

• B2: 48 anos de idade, casado, pai de 2 filhas, trabalha há 26 anos em um banco público e iniciou a carreira militar quando jovem, já trabalhou como policial no passado e no serviço de inteligência e segurança do banco atual. Falta pouco tempo para se aposentar. Explica que é uma pessoa reservada, que gosta das coisas corretas e "prefere ouvir a falar". Ele e a família vivenciaram duas situações de sequestros em função do banco.

• B3: 29 anos, separada, não tem filhos, graduada. Trabalhou aproximadamente 3 anos e meio em um banco privado. Refere nunca ter vivenciado nenhuma situação de violência anterior. Bons relacionamentos com empregadores passados.

• B4: 47 anos de idade, pai de 4 filhos (2 meninos e 2 meninas), sendo as 2 filhas do relacionamento atual, estudante na graduação de administração de empresas. Trabalha em um banco público há 13 anos, e já havia trabalhado em outro banco anteriormente. Passou por duas situações de sequestro nos últimos cinco anos por conta do banco. Considera-se focado e determinado.

As entrevistas foram realizadas pela pesquisadora e estruturadas de acordo com os seguintes eixos temáticos:

• história de vida e trabalho dos bancários antes do sequestro: propõe avaliar o cotidiano, a relação com o trabalho antes do ocorrido e subjetividade;

• dinâmica e experiência do sequestro: descreve o modus operandi utilizado no sequestro e percepção dos bancários no momento do ocorrido;

• percepção dos bancários sobre a atuação dos bancos diante do sequestro: identifica o manejo das instituições financeiras com esse tipo de situação;

• impacto psicossocial e manifestações de transtornos psíquicos após o sequestro: examina as consequências biopsicossociais na vida pessoal e profissional do bancário após o incidente. Essa estrutura buscou contemplar os objetivos propostos e o cotejamento entre o evento do sequestro, as percepções dos sujeitos sobre o ocorrido e a prática das instituições financeiras com relação ao episódio e à saúde dos trabalhadores.

Este estudo cumpriu os princípios éticos de pesquisas realizadas com seres humanos e teve a aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP).

 

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Iniciando a análise com base no primeiro eixo temático exposto anteriormente:

1. História de vida e trabalho dos bancários antes do sequestro: Foi possível perceber que a identidade profissional do bancário é estendida à identidade do sujeito, não apresentando dicotomia entre o sujeito mãe/pai; casado/separado, do bancário, profissional. Nesse contexto da subjetividade do trabalhador, ser convidado pela instituição bancária para assumir um cargo de confiança e lhe ser delegada a "chave" do cofre tem um significado simbólico de reconhecimento expresso nas narrativas dos entrevistados como sendo único e próprio da sua constituição como sujeito, ficando explícita a valorização da qualidade de ser confiável e comprometido.

Eu tenho 13 anos de banco. (...) Pessoalmente, eu que tenho isso muito arraigado, do meu pai, conhecimento de você ser honesto: o que é seu é seu; o que não é seu: se for dez centavos, não é seu! (B4)

A decisão da escolha da instituição financeira para o cargo único de "ser responsável pelo cofre da agência" parte da análise prévia sobre o grau de comprometimento, atitudes, comportamentos e valores éticos e morais do escolhido. Tal opção possui um duplo significado: para o sujeito que se sente reconhecido pela organização e para os demais bancários enquanto referencial simbólico a ser almejado. Substitui-se o conhecimento técnico pela valorização dos aspectos comportamentais de "vestir a camisa da empresa". A captura da subjetividade por parte da organização vai além do espaço laboral e é compreendida como uma extensão da vida pessoal e emocional26.

Eu sempre me orgulhei muito de trabalhar no banco, sabe? (...) Até, às vezes as minhas filhas ficavam doentes, né? E mesmo com minhas filhas doentes era difícil eu faltar, porque eu sabia que se eu faltasse ia faltar mão de obra, meus colegas iriam ficar desfalcados, né? (B1)

A gestão do poder da organização no campo psicológico desperta sentimentos ambíguos entre angústia/sofrimento e prazer, com efeito similar à dependência química26.

Os bancários consideram que são altamente comprometidos com o trabalho e concebem o banco como pertencente à sua identidade privada, ou seja, suas relações afetivas, investimentos emocionais estão vinculados ao trabalho: "o relacionamento com todo mundo sempre foi ótimo" ou "eu sempre levei isso muito normal". Quando o banco rompe com eles é que pensam em como são como indivíduos cindidos dessa relação, e isso gera forte sofrimento e sentimento de traição.

2. Dinâmica e experiência do sequestro: O sequestro pode ser entendido como um evento catalizador da violência e do medo, que coloca em questão o conflito nas relações de estreitamento estabelecido pelos bancários nas dimensões entre o público (mundo do trabalho) e o privado (a casa, a família). Estudo conduzido por Paes-Machado e Duarte Nascimento (2006)27 evidenciaram o mesmo modus operandi em oito sequestros ocorridos em Salvador, Bahia, ou seja, as extorsões mediante raptos pelos infratores começam fora das agências, pela tomada de reféns entre familiares e pessoas vinculadas aos bancários que dispõem das chaves ou das senhas para abertura dos cofres. As etapas do sequestro, cuja duração pode variar entre 12 e 24 horas, envolvem o sequestro e o estabelecimento de exigências a serem cumpridas pelo bancário.

Os pesquisadores em saúde ainda têm compreendido a violência por meio das causas externas, que incluem os eventos geradores de lesões, envenenamentos e outros efeitos adversos, incluindo os agravos relacionados ao trabalho. Para Minayo (1997)28, caracterizar a violência dessa forma é limitado, uma vez que sua operacionalização se dá por meio dos efeitos da agressão sobre as pessoas e envolve aspectos intersubjetivos e dialéticos. Lhuilier (2010)18 conclui que a violência no trabalho não deve ser analisada como algo externo inevitável, "um terremoto ou tsunami", mas como algo que se relaciona com a organização do trabalho.

Tratando-se do sequestro de bancário, a intimidação ultrapassa os limites do espaço laboral e invade o espaço privado das vítimas. Nesse tipo específico de violência, os sequestradores investigam por meses a vida e a rotina do bancário: núcleo familiar e seus hábitos, trabalho, lazer. Não costumam usar violência física, mas desarmam as vítimas com o terror de saberem detalhes de suas vidas e do funcionamento do banco.

(...) eu tava secando meu cabelo no banheiro e eu até achei que era ele (marido) brincando, olhei assim pra xingar, alguma coisa, e era um cidadão armado já me pedindo pra sair do banheiro, (...) e daí o cara já começou a chamar pelo meu nome, falou, olha, a gente tá aqui, Bancária 3, a gente tá aqui, porque você trabalha no banco e a gente quer que você pegue o dinheiro que vai chegar amanhã, já sabemos de muitas informações. (B3)

As ameaças ocorrem durante todo o tempo. Chegam a passar a noite toda com a vítima em casa, até que num determinado momento levam os membros da família para um cativeiro e continuam a pressão até o amanhecer, quando o bancário deve fingir que vai trabalhar normalmente, roubar o dinheiro do cofre e entregá-lo aos sequestradores em troca da vida de seus familiares. Os sequestradores abusam dessa vulnerabilidade familiar.

Nossa, acho que é das piores coisas que tem, né? (referindo à espera pelo dia seguinte sem a família) (...) fiquei com o sofá virado prá frente da televisão, eu conheço um pouco de arma... eles ficavam travando e destravando a pistola. A pistola tem uma travinha do lado, né? Faz "clic", "clic", "clic". Eles se comunicavam por, acho que por torpedo, celular, né? Eu percebia que eles recebiam torpedinhos, que eles ficavam "clic, clic". (B2)

Outra estratégia de violência psicológica utilizada é fazer com que a vítima sinta culpa, caso não haja êxito na ação.

E a ameaça era sempre essa, né, o dinheiro não é seu, é do banco, você que sabe qual é a consequência que você quer dar. E aí eles ficaram até de manhã os dois comigo lá... (B4)

(choro) Minha filha podia ter sido morta por causa da minha reação. Tudo bem que deu certo, mas assim, eu fiquei pensando assim, falei até com a psicóloga, eu falei: "será que eu não gosto da minha filha?" (B1)

O trecho a seguir reflete sobre a paralisia social mediante a violência:

No que eu entrei no meu carro, tava fechando a porta e veio um do meu lado, segurou a porta e já me tirou do carro. Aí eu me joguei no chão, comecei a gritar: "minha filha, minha filha, minha filha, socorro, minha filha". Ninguém ajuda. A rua tava cheia de gente, ninguém ajuda. (B1)

A ação dos criminosos é "normalizada" por conta das estratégias que utilizam e de como as pessoas se relacionam com isso: não escondem o rosto, conversam com a vítima em tons moderados, comem na casa, utilizam cama e banheiro.

Com o fim do sequestro, depois de passar longo tempo sob intensa pressão, a vítima e sua família desejam suprir suas necessidades básicas (descansar, comer, tomar banho) e procurar apoio de outros familiares ou amigos próximos, porém nesse momento precisam prestar depoimento na Delegacia de Polícia e retornar à agência para explicar ao banco a credibilidade dos fatos, estendendo a sensação de violência.

Então, aí de lá a gente foi direto pra delegacia, ficar umas horas lá na delegacia contando o..., contando detalhes que tinham acontecido, né? É outra parte horrível, né? Uma hora que você quer ficar sossegado, você ainda tem que ir pra delegacia. (B2)

Lidar com a incerteza de vida e morte traz à tona a percepção do quanto somos vulneráveis. Na fala do Bancário 4, fica evidente esse desgaste gerado pela perda do sentimento de segurança e proteção:

(...) então era uma ascensão que me agradava, poder ter uma família, dar estrutura pra ela, dar condições de elas viverem relativamente bem e de repente me vejo na situação sendo humilhado, minhas filhas sendo ameaçadas, levadas para lugares, depois elas me contaram, disseram que ficaram num banheiro, que aquele banheiro era sujo de sangue nas paredes, ficaram as três trancadas num banheiro, no meio do mato. (B4)

A violência psicológica pode ter consequências mais sérias para a vítima, o conflito entre a necessidade de encontrar algum sentido nos fatos e a impossibilidade de conseguir fazê-lo geram um grande esforço para adaptação individual e coletiva, favorecendo o adoecimento e o desenvolvimento de TEPT.

3. A percepção dos bancários sobre a atuação dos bancos perante o sequestro: No terceiro eixo da entrevista evidenciamos que após todo o processo de violência e sofrimento vivenciado, os entrevistados se depararam com a frustração de seu desejo de que a instituição bancária se comprometesse com seu bem-estar e segurança e oferecesse suporte aos trabalhadores, de forma a contribuir para a reorganização da vida profissional e social das vítimas e familiares. Entre a ideação e a realidade a distância é imensa, ocorre justamente o contrário do anseio desses trabalhadores. Segundo as narrativas, a condução dos casos pelos bancos é por vezes mais agressiva do que o próprio sequestro. Na percepção das vítimas, "o banco" está apenas preocupado com sua própria imagem.

(...) tanto que a preocupação maior do banco é, quando aconteceu comigo, era que eu não divulgasse como foi, que não aparecesse na TV, que não aparecesse no jornal, que não fosse de maneira nenhuma divulgado o que aconteceu. (B3)

Quando os bancários colocam a segurança da família acima dos interesses do banco se tornam objeto de suspeita e auditoria interna pela instituição. Dentro do que Iafolla (2004)29 denominou de segunda lesão das vítimas do crime, nos procedimentos de apuração das responsabilidades, em vez de vítimas, os bancários passam à condição de suspeitos e culpados, o que dificulta a recuperação dos traumas e a reintegração ao trabalho.

Apesar do intenso envolvimento afetivo na dinâmica do sequestro, os bancários entenderam como responsabilidade primária dar satisfação ao banco sobre seus atos. Esse comportamento demonstra o quanto são (ou foram) comprometidos com o banco, a lealdade que têm à instituição de trabalho e o quanto o sujeito profissional e o sujeito privado não possuíam diferenciação.

Eu abri o cofre, peguei o que dava pra pegar, coloquei tudo numa caixa e saí da agência falando que eu ia pra uma consulta. Mas, eu ainda lembrei e pensei em deixar um bilhete no cofre, porque eu tinha levado todo o dinheiro, né? (B3)

A falta de reconhecimento da dedicação investida no trabalho provoca tristeza e frustração, além da consolidação de um não lugar, um não entendimento das ações do banco, e tudo isso dificulta ainda mais a reorganização da vida emocional, social e profissional dessas pessoas.

Você fez tudo o que podia ali pelo banco e na hora que teve a ocorrência, o sequestro, a gente conseguiu preservar a família, preservar o dinheiro do banco, imagem, prender bandido. A gente fez uma agência, inaugurou, fez uma agência crescer e tudo o que ofereceram na hora que eu queria estar saindo da agência, mudar de função, foi um rebaixamento. "Você só vai para onde tiver vaga e se te quiserem." Curto e grosso, assim, a primeira vez. (B2)

Os gestores do banco demonstram despreparo ao lidar com o problema e dificuldades pessoais em auxiliar os trabalhadores.

O meu gerente geral nunca foi me visitar. Nunca foi me visitar (o entrevistado explicou que antes do sequestro eram amigos pessoais). As poucas vezes que ele entrou em contato comigo foi pra protocolar, é... foi de forma protocolar. Eu tinha que ir no plano de saúde, eu tinha que comparecer. (...) Cê se torna um bandido... na visão do banco. (B4)

O que se observa é que as instituições financeiras evitam discutir esse tema entre os bancários, seja porque terceirizam as atividades relacionadas com a segurança, seja porque restringem os procedimentos de segurança em um seleto grupo gerencial. Dessa forma, quando ocorre um sequestro, ninguém sabe como proceder.

(...) aí ninguém sabia o que fazer depois disso (depois da ida à Delegacia de Polícia), — volto a trabalhar, não volto, — não sei, você que sabe. Como assim eu que sei? Eu fui sequestrada e o que que eu faço? Ninguém soube me falar nada e eu fiquei morrendo de medo, porque eu não sabia se voltava a trabalhar, não voltava a trabalhar, e voltei a trabalhar. (B3)

O mecanismo perverso de controle utilizado está principalmente na inversão de papéis, pois o banco trata as vítimas dos sequestros como responsáveis e que merecem ser punidas por isso. Por responsabilização entende-se a forma de regulação institucional que impõe responsabilidades específicas aos indivíduos, relacionadas com a sua própria conduta ou com a de outros sujeitos a eles subordinados27.

A culpa injetada pelos bancos e a prática punitiva são direcionadas e têm como objetivo desqualificar aquele que tinha sido escolhido para ser um referencial para os demais bancários. Ou seja, no julgamento moral não foi a instituição que fez uma escolha errada, mas a vítima que não "seguiu os procedimentos previstos pela instituição".

Porque daí, sempre que acontece isso (sequestro) vai a inspetoria para inspecionar tudo, então aquele homem lá, né, um pavor, eu não sabia o que ele tava fazendo, me olhando como seu eu fosse uma bandida o tempo inteiro, e é essa a sensação que dá, que você é o bandido. (B3)

As soluções oferecidas pelo banco, quando existem, são, na verdade, propostas para que o trabalhador "não cause mais problemas" e se afaste, "eliminando o problema".

Aí no outro dia cedo ele (gerente da agência) ligou pra mim: "viu, eu conversei com Roberto (superintendente) e ele tem quatro propostas pra você: primeira, você volta pro postinho da instituição; segunda, você volta pra agência; terceira, a gente vai tentar uma permuta com uma pessoa de outra agência. Aí você sai da agência que tá e vai para outra agência ou então você vai na... no médico, pede afastamento. A gente coloca você no extraquadro, pra liberar a vaga aqui da agência". (B1)

Como a vítima não pode mais ser considerada uma referência para os demais, observa-se a desqualificação daquele que outrora fora modelo dos valores da cultura organizacional.

E quando o afastamento acontece...

(...) eu me afastei, me afastei porque, é... a minha menina não tinha mais estrutura, as crianças não tinham mais estrutura, eu precisava tratar de algumas coisas (...) Ele não tem aquele espaço que ele, o espaço dele foi tomado, foi ocupado, né? Ninguém preenche espaço vazio, preen..., é, aliás, o espaço ocupado, preenche o espaço vazio e você deixou um espaço vazio. (B4)

Além do sequestro, a condução dos casos pelos bancos se configura como outra forma de violência no âmbito da ética e da preservação dos direitos, como descreve a Bancária 3:

(...) concluíram que tinham que me mandar embora por justa causa porque eu não cumpri as normas do banco. Que seria em caso de sequestro eu ligar em cinco telefones, ou, e não fornecesse, e não abrir cofre e eu não poderia abrir cofre sozinha, coisa que acontecia todos os dias. (B3)

Os trabalhadores entrevistados revelaram que os treinamentos em segurança nos bancos são precários ou inexistentes. Quando há normas de segurança, elas são restritas a cargos de gerência.

Então a gente achava que tinha alguém tentando assaltar ali, né? (...) Então assim, num dos e-mails que eu mandei pra Central de Segurança que falou assim pra mim: "ah, lê o ... não tem nada que a gente possa fazer pra melhorar a segurança, tal, mas leia, siga a norma de segurança tal lá (...). Aí eu falei pra ele (instrutor da segurança) que mandaram eu ler a instrução de segurança, que eu não tenho acesso, que eu pedi pra imprimir. Ele falou assim: "ah. Sei. Se alguém imprimir pra você, você me avisa, porque não pode. É contra a norma imprimir a instrução de segurança". Falei: "ué, mas então como é que eu leio né?" (B1)

Fica claro no relato da Bancária 3 que o serviço de assistência oferecido pelo banco pressiona o trabalhador a utilizá-lo com a função de cumprir obrigações e parece mais ameaçador ainda.

(...) mas aí no final de tudo isso eu pedi um relatório pra ela (Psicóloga), que eu falei: se eu quiser continuar meu tratamento, alguma coisa, e ela disse que não poderia me dar um relatório sobre nada que tinha acontecido lá, que ela mandava apenas pro programa lá, o "viva bem". Então tudo isso eu acho muito estranho. (B3)

Por vezes os sequestradores anunciam que voltarão, e voltam, praticam os mesmos atos de violência com outra família de bancário e conseguem sair novamente impunes. O banco segue sua rotina no mesmo dia e os trabalhadores são novamente ignorados em sua dor.

(...) não deu um ano (entre o sequestro sofrido pela Bancária 3 e a colega de trabalho)... E quando aconteceu comigo eles falaram que voltavam. E eu falei lá. Então assim, são as coisas que a gente vê que é muito descaso. E eles (sequestradores) falavam coisa do tipo, ah, mas é muito fácil fazer isso com vocês porque eles não estão nem aí. (B3)

São vítimas do sequestro não apenas aqueles que o vivenciam diretamente, mas também as pessoas próximas ou vicárias, como os colegas de trabalho que podem facilmente apresentar traumas pela identificação com o sofrimento. A condução dos casos de forma violenta também favorece um ambiente de medo, insegurança e insatisfação. Esses trabalhadores não têm o direito de manifestarem suas angústias porque não são percebidos como envolvidos no ocorrido e devem continuar suas rotinas como se nada tivesse acontecido.

O baixo investimento da instituição bancária no cuidado de seus trabalhadores reforça sentimentos de que são apenas mais um número e podem ser substituídos a qualquer momento, uma vez que nem a proteção à vida é valorizada.

O que se conclui da história dos sequestros vivenciados pelos bancários é que a violência organizacional é tão grave que foi considerada pior do que o sequestro em si. Seguem relatos do sentimento que fica em relação ao banco, de dois entrevistados:

(...) porque a gente se sente um lixo né? Depois de tudo o que fez, eu me senti tratado assim como um, um lixo mesmo. (B2)

(...) isso eu posso te garantir. Que não foi o sequestro o trauma maior. Foi realmente a postura do banco com relação a tudo isso da maneira que aconteceu. (B3)

Os mecanismos utilizados pelos bancos para lidar com o pós-sequestro favorecem a manutenção do adoecimento e instalam sentimentos de desesperança, frustração e inversão de valores em relação ao que os bancários sentiam pelo seu papel profissional antes do sequestro. As consequências disso têm efeitos prolongados e trazem prejuízos à saúde.

Existe uma diferença importante na condução dos casos entre o banco público e o privado. O primeiro possui programas de atenção assistencial às vítimas e familiares, porém estabelece uma relação perversa referente ao direcionamento do trabalhador como: ser removido de uma agência bancária para outra; mudança de função; readaptação e reinserção após sequestro. O banco privado não se posiciona diante da violência a que seus trabalhadores estão expostos, sendo omisso no acolhimento às vítimas e tirano nas questões administrativas.

4. Impacto psicossocial e manifestações de transtornos psíquicos após o sequestro: As pessoas reagem de formas diferentes diante de situações de violência. Algumas manifestam sintomas agudos (reação aguda ao estresse) e outros sintomas tardios e recorrentes (TEPT). De qualquer forma, o sequestro é considerado extremamente estressante e causador de sofrimentos físicos e psicológicos imediatos e prolongados15.

(...) e vai levando a vida, seguindo em frente, com o trauma pras crianças principalmente, né? Ficam bastante abaladas, que a menininha, a menor, não tinha nem noção que é ter uma arma apontada, pessoas encapuzadas, então era... era... foi bem triste, vamos dizer assim. (B4)

Diante de muito conflito, existe o reconhecimento do adoecer:

E você adoece. Não adianta, não tem. Você se torna uma pessoa doente. Doente e fisicamente você engorda. Doente psicologicamente, você pode começar a beber mais do que o normal. Até porque às vezes você bebe pra dormir, né? (B4)

Existe um constante medo da situação traumática se repetir. Com isso há importantes mudanças que se perpetuam no estilo de vida, nas rotinas e nas relações. As coisas não são mais como antes, perdeu-se a confiança e a sensação de controle da sua própria vida30.

Eu brinco com minha psicóloga que antes eu era um leão e agora eu sou um rato, né? (B1)

Serafim e Mello (2010)22 explicam que pessoas que são diretamente atingidas pela violência têm uma maior chance de adoecer. Quanto mais grave e incompreensível for o ato violento, maior a chance de desenvolver um quadro de estresse pós-traumático ou depressão.

Uma pesquisa realizada por Almeida e colaboradores (2012) apontou que o TEPT tornou-se uma importante causa de acidente de trabalho e há necessidade de intervenção multiprofissional, com apoio médico e biopsicossocial, acolhimento do trabalhador no seu ambiente de trabalho e/ou afastamento, quando indicado31.

A violência do/no trabalho deve ser compreendida como os demais problemas que envolvem a segurança do trabalho. E quando o agente causador do adoecimento é relacionado ao trabalho, torna-se obrigatória a emissão da Comunicação de Acidente de Trabalho (CAT), mesmo por presunção32. Portanto, o sequestro de bancários deve ser caracterizado como acidente de trabalho, porém, a abertura de CAT raramente ocorre. Silva-Junior e colaboradores (2012) destacam que está enraizada na sociedade brasileira a sonegação de notificação referente ao nexo causal de adoecimento, demarcadas por aspectos políticos, econômicos, jurídicos e sociais33.

Silveira34 sugere construir uma base de dados estatísticos que possibilite mensurar as ocorrências e conhecer a dimensão da violência (no caso, sequestro do trabalhador); buscar prevenir a violência por meio de protocolos de segurança; informar claramente sobre os riscos e situações de violência no ambiente de trabalho; treinar os trabalhadores para situações ou cargos específicos (no caso do banco, gestores e supervisores); acolher as vítimas e oferecer serviços de assistência à saúde e suporte social adequado estendido aos familiares; estabelecer um protocolo organizacional, com procedimentos acordados e coerentes para lidar com a ocorrência de sequestro nos bancos.

 

CONCLUSÕES

Serem nomeados "guardiões do cofre" da agência representava o reconhecimento do banco e uma espécie de recompensa pelo comprometimento e fidelidade incondicional, isto é, serem modelos para os demais colegas. Essa ideação de confiança e valores organizacionais é destruída pela própria instituição após o sequestro.

Os entrevistados relataram sobre seus traumas, a invasão de suas residências por homens fortemente armados, às vezes encapuzados; sobre o que poderia vir a partir daí: torturas, tiros, mutilações, violência sexual às filhas, para onde levariam a família, o que aconteceria se não conseguissem pegar o dinheiro do banco e entregá-lo aos sequestradores. O medo do retorno dos sequestradores devido ao fato deles demonstrarem conhecimento sobre o cotidiano das vítimas e seus familiares. Diante desse cenário, o desenvolvimento de TEPT foi uma consequência inevitável, tendo como principais características o reviver o evento por meio de pensamento e reações físicas, a evitação persistente de coisas que lembrassem o trauma, como voltar ao local de trabalho onde tiveram que roubar o dinheiro para os sequestradores e a sensação de risco constante durante período prolongado.

O número de entrevistados é um aspecto de limitação do estudo. Apesar de inúmeras tentativas, a maioria das vítimas contatadas se negou a dar entrevistas devido ao medo de represálias do banco ou dos sequestradores ou para evitar reviver o evento traumático.

Apesar do forte impacto do sequestro na vida dessas vítimas, os bancários percebem que a condução do caso pelo banco foi ainda mais agressiva e com piores consequências emocionais para suas vidas. Isso principalmente por conta de condutas inadequadas como a "culpabilização" dos sujeitos pelas instituições; a segurança precária preocupada com os bens materiais e não com os trabalhadores; e a falta de acolhimento e reconhecimento após o sequestro.

A relação estabelecida entre o bancário e o banco é tão intensa e contraditória que se mistura à vida privada, criando um espaço de dedicação incondicional ao trabalho. Essa fusão entre a vida pública e a vida privada está carregada de afeto, e quando o banco rompe a relação de confiança, após a violência sofrida pelo trabalhador, descortina sentimentos de abandono e desamparo. É nesse momento que muitas vezes se deparam com questões pessoais que antes não eram percebidas.

Observa-se, portanto, que a organização social do trabalho bancário está baseada numa tríade organização do trabalho/violência/adoecimento. A violência simbólica ocorre pela imposição de como perceber a realidade, que é definida pelo interesse de determinados grupos sociais. Por conta disso, torna-se institucionalizada e "permite obter o equivalente daquilo que é obtido pela força física ou econômica, graças ao efeito específico de mobilização, só se exerce se for reconhecido, quer dizer, ignorado como arbitrário", como refere Bourdieu (2010)35.

Embora o ambiente bancário ainda seja caracterizado como machista, pois os homens ocupam os cargos mais altos e com maiores salários e as mulheres sofrem mais assédios, não foi perceptível a diferença de gênero na forma de lidar com as vítimas de sequestros, percebendo da mesma forma violenta a discriminação profissional e o assédio moral.

A principal característica da experiência com o sequestro é o desamparo dos trabalhadores com respeito à organização, à vida familiar e às condições gerais de existência. Trata-se de episódios que despedaçam a representação social do que significa ser um bancário comprometido com os valores organizacionais de confiança da instituição e dos próprios colegas de trabalho, que o tinham como referência, e da perda de identidade nas relações familiares e do seu próprio "eu"36.

Este trabalho denuncia o sequestro e as consequências desastrosas para a vida psíquica das vítimas e seus familiares e que abrange uma rede complexa de ações e diálogo entre os bancos, sindicatos, a FEBRABAN e o Poder Público.

Vale ressaltar que os sequestros de bancários são raramente divulgados, embora façam parte do cotidiano desses trabalhadores. Nesse sentido, o adoecimento das vítimas permanece na penumbra e sob o manto da invisibilidade, além de reforçar práticas organizacionais que não zelam pela segurança e saúde dos trabalhadores. Trata-se de uma questão de saúde pública, e a divulgação desse estudo é fundamental para começar a lançar luz sobre uma problemática que está camuflada pelas instituições financeiras em todo o mundo, dado reforçado pela escassez de produção científica sobre esse assunto, o sequestro de bancários.

Essa pesquisa evidencia o processo psicossocial de sofrimento e adoecimento dos bancários das instituições públicas e privadas que, apesar de conviverem com o risco de assaltos e sequestros em seu cotidiano, não encontram segurança por parte dessas instituições, tampouco acolhimento por ocasião do evento traumático real.

Espera-se que este estudo possa ter representado a voz do sofrimento dos bancários vítimas de sequestro e possa contribuir para a discussão ampliada desse tema com vistas à sua prevenção, ao apoio e acolhimento dos trabalhadores acometidos.

 

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Recebido em 18 de Setembro de 2016.
Aceito em 16 de Dezembro de 2016.

Trabalho realizado na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) – Campinas (SP), Brasil.

Fonte de financiamento: nenhuma


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