0
Visualização
Acesso aberto Revisado por Pares
ARTIGO ORIGINAL

Metemoglobinemia secundária à exposição ocupacional: relato de nove casos clínicos

Methemoglobinemia due to occupational exposures; report of nine clinical cases

Eduardo Mello De Capitani1 Ronan José Vieira1; Fábio Bucaretchi2; Flávio A. Duque Zambroni3; Paulo Roberto de Madureira4; Adriana Safioti Toledo5

RESUMO

São descritos oito casos clínicos de metemoglobinemia relacionados a exposições ocupacionais a derivados anilínicos e nitrofenóis, e um caso secundário à exposição a herbicida à base de anilida. Todos os casos tiveram pronto atendimento no pronto-socorro com o concurso do Centro de Controle de Intoxicações, com uso de azul-de-metileno em dose padronizada, com boa evolução em todos os casos, mesmo os com elevados níveis de metalHB no momento do atendimento. Apesar da raridade da ocorrência desse tipo de intoxicação, existe a necessidade de treinamento e preparo adequada ao primeiro atendimento desse tipo de ocorrência pelas indústrias onde existe o risco. São discutidos os mecanismos de produção de MetaHb, quadro clínico, diagnóstico diferencial e critérios e forma de tratamento.

Palavras-chave: Saúde Ocupacional; Toxicología Ocupacional; Metemoglobinizantes; Anilinas; Intoxicação.

ABSTRACT

Despite the rarity of occurrences of methemoglobinemia in occupational sets, a high degree of suspicious and good training aiming diagnosis and prompt tratment must be implemented in industries where the risk of intoxication exists. Reporting nine clinical cases of methemogobinemia afler occupational exposure (eight by aromatic compounds and one due to herbicide spraying) the authors review and discuss the clinical presentation, diagnosis and treatment criteria as well as physio-pathogenic explanation to intoxication and antidote treatment.

Keywords: Occupational Health; Occupational Toxicology; Intoxication, Methemoglobinemia; Aromatic Compounds.

Devido a alta lipossolubilidade e aos mecanismos de formação de MetaHb (MetalHb), que envolvem ação indireta na oxi-hemoglobina e ação através de via específica de oxirredução a partir de formação de metabólito ativo, compostos anilínicos e nitro derivados em ambiente ocupacional devem ser considerados como de alto risco de intoxicação clínica, podendo levar em alguns casos à morte por asfixia. Apesar de raros, os poucos casos que ocorrem merecem rápido diagnóstico e tratamento emergjencial e específico. Para tanto os serviços médicos e de segurança do trabalho de empresas nas quais se manipulam substâncias mete-moglobinizantes devem estar treinados e preparados para tal eventualidade.

A seguir são descritos nove casos de intoxicação por substâncias metemoglobinizantes ocorridos na região de Campinas, SP.

 

RELATO DE CASOS

No período de novembro de 1990 a abril de 1997, foram atendidos no Pronto-socorro do Hospital de Clínicas da Unicamp, com o concurso do Centro de Controle de Intoxicações FCM-HC-Unicamp, nove pacientes trabalhadores com quadro agudo de mete-moglobinemia secundário à exposição ocupacional.

A Tabela 1 resume as circunstâncias, sinais e sintonias, níveis de metemoglobinemia (metaHb) à entrada no serviço de urgência, e os níveis após tratamento com azul-de-metileno dos nove casos atendidos.

Trata-se de uma série de casos de trabalhadores masculinos, jovens (média de idade 25,5 anos), a maioria com pouco tempo de exposição (sete pacientes com tempo de exposição emboras média de 2,2 horas) e dois com três e 15 dias de exposição, respectivamente, Dos nove casos, oito se ocupavam da limpeza e manutenção de reatores químicos com resíduos de para cloro anilina e/ou anilinas e nitrofenóis, em indústrias químicas. Um caso foi de um agricultor utilizando herbicida à base de anilida, por três dias seguidos, tendo início de sintomas ao final do terceiro dia.

Um caso mostrou-se assintomático, reclamando apenas de aparecimento de cianose, que o levou a procurar o Serviço, Dosagem de metaHb deste caso mostrou ser de 11,2%, As queixas de tontura e cefaléia foram comuns a oito dos nove casos, em geral associadas a dispnéia leve a intensa, sintomas gastro-intestinais como náusea e vômitos. Inconsciência e sinais de hipoxemia graves foram observados em um caso com dosagem de metaHb na entrada de 79,3%, Todos os pacientes apresentaram algum grau de coloração azulada das mucosas ("cianose") variando, numa escala semiquantitativa em cruzes, de dois a quatro cruzes em quatro, havendo pouca correspondência com níveis de metaHb (Tabela 1).

 

 

Todos os casos foram tratados com azul-de-metileno (cloreto de metiltionina) na dose de 1 a 2mg/kg de peso em injeção endovenosa lenta, com boa resposta imediata quanto a sintomas e graus variados de redução da cianose. Em três casos houve necessidade de repetição da droga em doses mais baixas, duas a quatro horas depois em função de manutenção do quadro clínico de dispnéia e cianose.

Todos os pacientes referiram estar usando algum tipo de equipamento de proteção individual como máscaras (sem especificação do tipo), luvas e botas de borracha e roupas grossas. O agricultor referiu vazamento na bomba de aspersão com contato direto com a região dorsal, durante os três dias de aspersão.

A avaliação laboratorial complementar desses pacientes não contemplou a realização de oximetria de pulso, não disponível à época. Foi realizada gasometria em apenas três casos, mostrando graus de moderados a graves de hipoxemia, sem correspondência com os níveis de metaHb encontrados (ver Tabela 2).

 

 

DISCUSSÃO

MetaHb é formada quando o ferro da hemoglobina reduzida (forma ferrosa) é oxidada, sem a participação do oxigênio, indo para a forma férrica, que se toma incapaz de carregar O2. Os sistemas fisiológicos de manutenção da hemoglobina reduzida, pronta a receber o oxigênio, são responsáveis pela presença de níveis de metaHb no máximo até 1,5%. Níveis acima deste são considerados anormais. Várias substâncias são capazes de oxidar a hemoglobina, fazendo parte da lista vários medicamentos, como as sulionamidas e corantes azo utilizados como anti-sépticos e muitas substâncias utilizadas em indústrias químicas. A Tabela 3 mostra algumas dessas substâncias mais comumente encontradas em ambientes ocupacionais.12 O mecanismo de formação de metaHb pelas anilinas e nitrofenóis envolve fase de transformação metabólica desses compostos em intermediário ativo, interferindo no ciclo de Kiese do oxirredução, permitindo que uma pequena dose de substância desencadeie grande produção de metaHb.3

 

 

Os sintomas de intoxicação relacionam-se aos graus de hipoxia, sendo referidos tontura, cefaléia e dispnéia na maioria dos casos, principalmente quando níveis de metemoglobinemia estão acima de 10% ou 35%. Níveis a partir de 10% a 15% promovem, em geral, aparecimento de "cianose" de lábios e extremidades sem correspondente dispnéia, pois correspondem a cerca de 1,3 a 2g de I Hb na forma oxidada, e o mesmo grau de cianose só ocorre quando 6g de Hb encontram-se na forma de deoxi-hemoglobina.

A discrepância entre o grau de "cianose" e sinais e sintomas de hipoxemia deve-se ao fato da cianose nesses casos estar relacionada â coloração do pigmento mete-hemoglobina, em excesso, e não ao porcentual de deoxi-hemoglobina. Dessa forma, o diagnóstico náo é difícil de ser feito quando se suspeita de exposição ocupacional a metemoglobinizantes (Tabela 3) e o trabalhador/paciente apresenta-se com grau de cianose desproporcional ao desconforto observado/esperado, além do fato de a "cianose" não responder à administração de O2.

Dos casos relatados, apenas um mostrou-se assintomático e com grau leve de "cianose" e nível de metaHb de 11,3%. Queixas de náuseas, tontura, dispnéia e cianose foram as mais comuns nos casos descritos, com relato de vômitos em um caso com e inconsciência com grave depressão respiratória om outro com 79,3%. Casos relatados na literatura com níveis ao redor de 80% de metaHb apresentaram todos sinais e sintomas graves de hipoxemia, com risco de morte iminente2. Resultados de gasomotria nem sempre sáo confiáveis, pois medem pressão parcial de O2 dissolvido, podendo naquele momento estar normal ou pouco baixo, não havendo boa correlação com níveis de metaHb. O mesmo pode-se dizer da oximetria de pulso que pode estar falseada pela captação da emissão de onda da metaHb que se sobrepõe tanto ao comprimento de onda da Mb como da deoxi-hemaglobina2. Em nossos casos temos resultados de gasometria apenas em três deles, mostrando graus de hipoxemia sem correspondência com niveis de metemoglobina (Tabela 2).

O tratamento da metemoglobina deve seguir os procedimentos básicos de afastamento imediato da exposição, banho prolongado e troca de roupas, e administração de oxigênio visando maximizar a oxigenação da hemoglobina reduzida ainda disponível e a dissolução de O2 no sangue.

O tratamento específico visando reverter o estado de oxidação da Hb é feito basicamente com azul-de-metileno (cloreto de metiltionina). O mecanismo de ação dessa droga relaciona-se à redução da metaHb através de transferência de elétrons do sistema NADPH - NADP+ via NADPH-redutase, convertendo o azul-de-metileno em azul-de-leucometileno. Como esse mecanismo é sustentado pela regeneração do NADPH pela via da pentose fosfato, haverá falha no tratamento com azul-de-metileno em deficientes fio G6P-D.

A dose de azul-de-metileno varia de 1 a 2mg/kg em injeção endovenosa bastante lenta (em 5 a 10 minutos). A melhora dos sintomas e do grau de ctanose ocorre em cerca de 30 minutos na maioria dos casos, podendo haver necessidade de nova dose em período de uma a duas horas no caso de manutenção dos sintomas ou da cianose4,5. Contra-indicações incluem insuficiência renal e deficiência de G6P-D ou durante hemólise. Azul-de-metileno em altas doses pode promover produção do metaHb. Efeitos colaterais podem ocorrer quando em injeções muito rápidas, podendo haver náuseas, vômitos, taquicardia, constrição torácica ansiedade, agitação, tremores, dores abdominais, cefaléia e tonturas. Necrose local pode ocorrer no caso de extravasamento da droga. Critérios de indicação de tratamento com azul-de-metileno incluem níveis de metaHb acima de 30-35% com sintomas de hipoxiemia. Níveis mais baixos de metaHb, sem sintonias, podem ser tratados conservadoramente, observando-se o decréscimo gradativo da metaHb em função da eliminação da droga causadora. Nos casos de ingestão de substâncias com meia-vida prolongada, como a dapsona, que também apresenta ciclo êntero-hepático mantendo altos índices de reabsorção entérica durante vários dias, a associação do azul-de-metileno com doses de carvão ativado repetidas vezes tem sua indicação6.

Nossos casos refletem a literatura internacional com relação ao tipo de substância ocupacional mais freqüente produtora de metemoglobinemia. Dos nove casos descritos um provinha de área rural, tendo sido exposto a herbicida, e os outros oito expuseram-se a compostos aromáticos. Bradberry2, em revisão de 603 casos ocupacionais publicados até 2002, observou que 96,5% deles foram causados por compostos aromáricos, envolvendo exposição por via dérmica e inalatória simultaneamente, como nos casos aqui descritos. Indústrias manipulando as substâncias metemoglobinizantes relacionadas na Tabela 3 devem manter equipes mínimas de atendimento primário local para casos de intoxicação encaminhando rapidamente os casos graves necessitados de tratamento antibiótico específico.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1. Seger DL. Methemoglobin-forming chemicals. In: Sullivan JB, Krieger GR, editors. Hazardous materiais toxicology: clinical principles of environmental health. Baltimore: Williams & Wilkins; 1992. p.800-6.

2. Bradberry SM. Occupational methaemoglobinaemia, mechanisms of production, features, diagnosis and management including the use of methylene blue. Toxicol Rev 2003; 1: 13-27.

3. Kiese M. The biochemical production of ferrihemoglobin-forming derivatives from aromatic amines, and mechanicsms of ferrihemoglobin formation. Pharmacol Rev 1966; 18: 1091-161.

4. Curry S. Methemoglobinemia. Ann Emerg Med 1982; 11: 214-21.

5. Howland MA. Methylene blue. In: Godfrank: LR, editor. Godfrank's toxicologic emergencies. 5th ed. Norwalk: Appleton & Lange; 1994. p.1179-80.

6. Bucaretchi F, Miglioli L, Baracat ECE, Madureira PR, De Capitani EM, Vieira RJ. Exposição aguda e metemoglobinomia em crianças: tratamento com doses múltiplas de carvão ativado associado ou não ao azul-de-metileno. J Pediatr (Rio de Janeiro) 2000; 76: 290-4.


© 2024 Todos os Direitos Reservados