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RELATO DE CASO

Evolução de um paciente com Hepatite C exposto a produto hepatotóxico

The Hepatitis C evolution in a patient exposed to hepatoxic products

Damásio Trindade1; Dvora Jovelevithis2; Mateus Ripoll Becker3; Clarissa Prati3

RESUMO

A exposição ocupacional a produtos químicos é comum, sendo a hepatotoxicidade um dos efeitos mais graves. Associada a esta, uma doença viral como a hepatite C, nesses trabalhadores, parece colocar o paciente em situação de maior risco. Relata-se o caso de uma paciente feminina, com diagnóstico de hepatite viral C, cuja evolução natural parece ter sido acelerada pela exposição ocupacional à substância hepatotóxica. Atualmente, a exposição ocupacional a produtos químicos ocorre em diversos setores produtivos, pondo em risco a saúde dos trabalhadores. O monitoramento do ambiente e os indicadores biológicos têm sido amplamente preconizados e aplicados, porém parece que o médico do trabalho não tem dado a devida atenção ao diagnóstico de doenças associadas, que muitas vezes sâo desconhecidas pelo trabalhador. Dentre as inúmeras comorbidades possíveis, salienta-se a hepatite viral e, dentre elas, a causada pelo vírus C. Tal agente etiológico só passou a ser triado em 1993 (Portaria 1.376 do Ministério da Saúde) nos bancos de sangue e, por isso, o número de portadores é incerto, mas as estimativas são de 170 milhões de infectados no mundo, desses 3,2 milhões no Brasil1. Apesar da conhecida história natural da doença, na qual um número significativo de pacientes evolui para cirrose e hepatocarcinoma2,3, estudos apontam para um possível tratamento de erradicação definitiva. Portanto, o diagnóstico é imperativo, principalmente naqueles expostos a outros agentes com potencial lesivo bepático.

Palavras-chave: Exposição Ocupacional; Hepatotoxicidade; Hepatite Viral C.

ABSTRACT

Occupational exposure to Chemical products is very frequent, and liver toxidty appears as one of its most serious effects. Besides that, the diagnosis of associated viral diseases in some workers, such as hepatitis C, brings to the patients a major risk. A case study of a female patient with a diagnosis of hepatitis C, whose natural evolution seemed to be increased by occupational exposure to a toxic liver substance, is described.

Keywords: Occupational Exposure; Hepatotoxicity; Hepatitís C.

RELATO DE CASO

Identificação

V.L.C.E., 38 anos, branca, casada, natural e procedente de Canoas (RS).

Motivo da Consulta

Diarréia e dor abdominal intensa.

História da Doença Atual

Paciente procurou o Ambulatório de Doenças do Trabalho (ADT) do Hospital de Clinicas de Porto Alegre (HCPA) em agosto de 1994 referindo episódios intermitentes de diarréia há quatro meses, com duração aproximada de 15 dias. Na última crise associou-se um quadro de dor abdominal intensa em faixa. Relatava também lesões cutâneas bolhosas nos antebraços e nas pálpebras, pruriginosas, que regrediam com o uso de beta meta sona tópica e terfenadina oral. As lesões melhoravam com o tratamento e afastamento do trabalho, e eram exacerbadas com o retorno à atividade.

História Ocupacional

Referia atividade como isoladora de máquinas elétricas e montagem de bobinas há dois anos, em uma estrutura metálica revestida por plástico em forma de bolha, oito horas por dia. Usava apenas botina e macacão com manga longo como equipamento de proteção individual (EPI). Relatava contato com fibra de vidro, papel de mica, terebentina, butano e xileno. Anteriormente, exerceu função de costureira durante quatro anos em empresa de calçados.

História Mórbida Pregressa

História de transfusão sangüínea aos 16 anos. Aguardava exérese de nódulo em mama esquerda. Perda de 12 kg nos últimos seis meses (SIC).

História Familiar

Mãe cardiopata.

Perfil Psicossocial

Fumante (10 cigarros/dia) desde ao 18 anos. Negava uso de anticoncepcional oral (ACO), mcdicações, drogas e/ou álcool.

Exame Físico

Dor nos hipocôndrios à palpação, sem visceromegalias. Pequeno nódulo na mama esquerda à palpação. Ausência de lesões cutâneas (no momento do exame físico a paciente já estava afastada e em uso da medicação tópica), demais aspectos sem alterações.

Hipóteses Diagnósticas Iniciais

Pancreatite química, hepatite viral e/ou química, neoplasia de mama e dermatose ocupacional.

Exames

Dentre os exames solicitados, descrevemos os positivos ou alterados; anti-HCV e PCR para vírus C positivos, genótipo tipo I, anti-HBs reagente, alfa-feto-proteina 17,6mg/dl (fumantes até 10mg/dl). CGT 65u/l (até 20), CEA 7,1 (normal até 5, em fumantes até 10), amilase 120u/l (até 87u/l) e lipase 880 (60u/l). Ácidos hipúrico e metil-hipúrico normais (coleta há mais de 72 horas de afastamento do trabalho). ECO abdominal com fígado contornos e ecogenicidade levemente irregulares de dimensões normais sem alterações na vesícula biliar. Colonoscopia com hemorróidas externas. AP: mucosa de intestino delgado com folículos linfóides hiperplásicos, mucosa de intestino grosso com edema de córion. Fath teste: sensibilidade à terebentina + + +/4 e fibra de vidro + +/4, Biópsia hepática: hepatite crônica ativa moderada de provável etiologia viral.

Evolução

Paciente foi inicialmente internada para o tratamento da pancreatite química com evolução favorável, recebendo alta para seguimento ambulatorial.

Indicou-se o afastamento da função devido ao quadro de pancreatite química e dermatose ocupacional. A equipe médica realizou visita ao local de trabalho para avaliação dos riscos ocupacionais. Dessa forma, confirmaram-se as informações da paciente quanto a descrição do local e agentes químicos existentes. Chamavam a atenção o odor forte de xileno, a ausência de exaustão adequada no local e a falta de proteção respiratória individual. Após a visita, foi encaminhado o pedido de CAT e iniciada a reabilitação profissional.

A paciente foi tratada com interferon por seis meses, com interrupção devido ao fenômeno de breaktrough (anticorpo antiinterferon) em 01/96. O nódulo mamário retirado era benigno (fibroadenoma). Seguiu em acompanhamento e dentro de um ano evoluiu para cirrose (01/97), com identificação de nódulos à ecografia abdominal. Um ano após (01/98), foi evidenciado um nódulo hepático de 5cm, com diagnóstico anatomopatológico posterior de hepatocarcinoma. A paciente foi encaminhada para lista de transplante hepático. Durante o estadiamenlo, o tumor evoluiu em quatro meses para 9cm. Foram realizadas então sessões de quimioembolização do tumor, com boa resposta local, porém com aparecimento de metástases abdominais no seguimento. A paciente evoluiu para óbito, no início de 1999.

 

DISCUSSÃO

O fígado é o órgão responsável por desempenhar em torno de 300 funções, entre elas a de metabolizar inúmeras substâncias químicas encontradas na natureza e no ambiente de trabalho, sendo vital na desintoxicação de várias substâncias tóxicas. Hepatotoxinas podem ser oriundas de agentes biológicos e químicos e sua exposição crônica ou maciça aguda pode minar a capacidade de "filtro" realizada pelo órgão. Cerca de 95% dos compostos químicos que penetram no organismo são metabolizados por este orgão. A hepatotoxidade pode se manifestar clinicamente de várias formas com quadros colestáticos, de insuficiência hepatorrenal, entre outros4,5. Muitas drogas são reconhecidamente hepatotóxicas e carcinogênicas, algumas bem estabelecidas, outras necessitando confirmação. Vários estudos têm demonstrado que trabalhadores expostos ao xileno desenvolvem quadros histológicos que variam de esteatose à progressão de fibrose para cirrose, mesmo sem evidência de abuso de álcool ou hepatite viral4. O xileno, ou dimetilbenzeno, é um hidrocarbonelo aromático que tem características semelhantes ao benzeno, porém menos mielotóxico, menos volátil e sem ototuxicidade. Pode ser hepatotóxico, neurotóxico e causar irritação de olhos, pele e mucosas, além de náuseas, cefaléia, tonturas, sonolência e coma, dependendo da concentração a que o trabalhador tenha sido exposto4,6. Essa substância é muito usada em misturas de thinner e tintas4,6,7, sendo o limite de tolerância aceito pela NR 15 de 78 ppm6,8. O monitoramento biológico pode ser feito através do ácido metil-hipúrico urinário4,6,8. Um estudo de casos controle mostrou um risco relativo (RR) de 1,5 para câncer de próstata, .3,7 para linfussarcoma e 3,3 para leucemia em trabalhadores expostos ao xileno. Outro estudo mostrou um RR de 2,0 para o desenvolvimento de neoplasias primárias do sistema nervoso central em trabalhadores expostos a agentes químicos, entre eles o xileno7, Apesar disso é considerado pela American Conference of Governmental Industrial Hygienists (ACGIH) como um agente de suspeição de carcinogenicidade para o ser humano, porém sem dados suficientes para se afirmar isso de forma conclusiva (classificação A4)7,9. A paciente apresentou um quadro lipo pancreatite sem evidência de cálculos biliares, doença auto-imune, uso de drogas (ACO e álcool) mas com exposição a um conhecido produto hepatotóxico como o xileno. Pelo fato da paciente estar afastada do produto químico há mais de 72 horas da exposição, não se póde caracterizar exposição química ocupacional4,6,8. Os fatores de risco estabelecidos mais freqüentes para pancreatites agudas são, entre outros: tóxico-metabólicos (álcool, hipercalcemia, medicações, hipertrigliceridemia), mecânicos (litíases, estenoses obstruções, traumas) e miscelâneos (auto-imunes, infecções, vasculares)3,10. A paciente apresentava hepatite por vírus C que muitos advogariam como sendo a causa do dano hepático e evolução para a neoplasia, como bem estabelecido na literatura, deixando de lado a exposição ocupacional como fator corroborante. Cabe lembrar que a evolução natural da infecção pelo vírus C para cirrose ocorre após aproximadamente 20,6 ± 10,1 anos2 e a referida paciente evoluiu em um ano em seu seguimento no ambulatório. Da mesma forma, a evolução para hepatocareinoma em pacientes com vírus C ocorre após 28,3 ± 11,5 anos2 em aproximadamente 25% dos casos. Já nesta trabalhadora, evoluiu rapidamente da cirrose para o hepatocarcinoma, em apenas um ano. Tais fatos evidenciam o que alguns pesquisadores estudam e tentam comprovar; que a associação entre vírus (HCV) e hepatotoxina (xileno) propicia um pior prognóstico4,11, como se tem observado na experiência deste serviço (ADT). Este caso deve servir como alerta aos médicos que toda associação entre vírus e hepatotoxina pode modificar a história natural da doença para um pior prognóstico por aceleração de seu processo. Para tal é fundamental o controle médico ocupacional adequado quando o trabalhador se expõe a risco químico.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1. Brasil. Ministério do Saúde. Hepatites virais: o Brasil está atento. Brasília; 2003.

2. Myron T, Neveen E-F et al. Clinical outcomes after transfusion-associated hepatitis C. N Engl J Med 1995; 332:1463-6.

3. Bennett JC, Plum F, editors, Cecil texlbook of medicine. 20th ed. Philadelphia: WB Saunders; 1996.

4. Joveleviths D, Viana MCV Doença hepática relacionada ao trabalho. In: Mendes R. Patologia do trabalho. 2ª.ed. São Paulo: Atheneu; 2003. v 2, p 1399-421.

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6. Buschinelli JTR Agentes químicos e intoxicações ocupacionais. In: Ferreira Júnior M. Saúde do trabalho: temas básicos para profissional que cuida da saúde dos trabalhadores, São Paulo: Roca; 2000. p. 137-75.

7. World Health Organization. International Agency for Research on Cancer, IARC monographs on the evaluation of carcinogenic risks to humans, Lyon; 1989. v. 47.

8. Brasil. Ministério do Trabalho. Secretaria de Segurança e Higiene e Medicina do Trabalho. Segurança e medicina do trabalho. 52ª ed. São Paulo: Atlas; 2003. (Manuais de Legislação Atlas)

9. Associação Brasileira de Higienistas Ocupacionais-ABHO. ACGlH, Limites de exposição (TLVs) para substâncias químicas e agentes físicos & índices biológicos de exposição (BEIs). São Paulo; 2003.

10. Alves JC. Pancreatite aguda: diagnóstico e terapêutica. In: Pré-congresso - Terapêutica em Gastroenterologia, São Paulo: Lemos Editorial; 2002. p.61-93.

11. Zimnnerman HJ, Drug-induced liver disease. In: Schiff ER, Sorrell MF, Maddrey WC. Disease of the liver. 8th ed. Philadelphia: Lippincott Haven; 1999. v. 2, p.973-1064.


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