1957
Visualizações
Acesso aberto Revisado por Pares
ARTIGO ESPECIAL

A visão ramazziniana e os discriminados

Ramazzini’s views on discriminate-against people

Rubens Bedrikow; Marcia Cristina das Dores Bandini

DOI: 10.5327/Z1679443520180081

RESUMO

No seu livro Doenças dos trabalhadores, publicado em 1700, Bernardino Ramazzini dedicou um capítulo às doenças que acometiam os judeus. Nessa época, eles eram frequentemente perseguidos e proibidos de exercer a maioria das ocupações, restando-lhes como principal atividade permitida a recuperação e o comércio de roupas a partir de tecidos velhos e usados. Ramazzini observou que problemas respiratórios, cutâneos e oculares eram comuns para esse povo e estavam relacionados a sua atividade ocupacional típica. Concluindo, a fé religiosa foi fator relevante para determinar a morbidade desse grupo populacional.

Palavras-chave: medicina do trabalho; história da medicina; judeus.

ABSTRACT

In his book Diseases of workers, published in 1700, Bernardino Ramazzini devoted a chapter to the diseases affecting Jews. At that time, Jews were often persecuted and forbidden to engage in most occupations, except for recovering and selling clothes made of old and worn cloth. Ramazzini noticed that respiratory, skin and eye problems were common among Jews, and were related to their typical occupations. To conclude, religion has been a relevant determinant of the morbidity of this population group.

Keywords: occupational medicine; history of medicine; Jews.

CONTEÚDO

Em 1700, o médico italiano Bernardino Ramazzini publicou Morbis artificum diatriba, e, a partir de seus estudos e observações, propôs a introdução de uma pergunta simples ao roteiro de anamnese médica: que arte exerce?

"Doenças dos judeus" é o título de um dos capítulos do livro. Chama a atenção o fato de haver um capítulo dedicado a esse povo, uma vez que o livro foi organizado por ocupações: doenças dos mineiros, coveiros, massagistas, químicos, oleiros, pintores, ferreiros, e assim por diante. Por que haveria o médico, professor, poeta e músico de se interessar pelos judeus entre os mais de 50 ofícios observados? Considerado um dos precursores da medicina social, Ramazzini observou que os judeus do século XVII viviam "mal, apertados em estreitas ruelas" e atribuiu suas doenças à miséria, fome, condições de moradia e atividades ocupacionais, e não à raça, genética ou endemia1.

As principais doenças ou situações associadas a eles eram problemas respiratórios (rouquidão, tosse violenta, dispneia, tísica), oculares (vista fraca, miopia, remelas), cutâneos (sarna), emocionais (melancolia e mau humor), otológicos (surdez e dores de ouvido), sedentarismo, caquexia, distúrbios estomacais, cefaleia e dor de dente1.

Foram consideradas como responsáveis por esses males as atividades relacionadas a: costura em ambientes pequenos, escuros e pouco ventilados; limpeza e amolecimento de colchões velhos; e fabricação de papel a partir de roupas velhas. A descrição feita por Ramazzini sobre o processo de trabalho denota apurado senso de observação, indispensável a quem se interessa pela relação entre o trabalho e a doença, mas também útil para se ter um panorama de como era a vida cotidiana dos judeus de então:

Dedicavam-se a remendar sapatos e roupas velhas, viviam de costurar [...] as mulheres hebreias, atarefadas o dia inteiro e parte da noite ao lado de uma fraca luz de candeia, parca iluminação, como de lâmpadas funerárias [...]. Além da profissão de remendar, têm, pelo menos na Itália, a de arranjar os colchões de lã, a qual se endurece, amassada pelo contínuo deitar durante anos; estendem os colchões sobre grades de vime, sacodem-nos e os batem com varas, e assim amolecem e se tornam mais agradáveis para o descanso. Ganham bastante com esse trabalho, percorrendo as casas das cidades; ao cardarem e baterem a lã velha, suja e urinada muitas vezes, aspiram sujeiras pulverulentas provocadoras de graves danos [...]. Na minha opinião não é tão perniciosa a poeira por porvir de lã velha, e sim por causa das impurezas que se misturam com a lã1.

Além da grande contribuição para a medicina no que se refere à relação entre trabalho e doença há outra, menos explícita, mas igualmente relevante, que se refere ao lugar dos judeus na estrutura social, devido à sua religião, sua atividade ocupacional e as doenças observadas por Ramazzini.

Historicamente, Edgar Morin chama a atenção para o fato de que, enquanto existiu um reino de Judá, tendo como capital Jerusalém, a noção de judeu esteve ligada ao mesmo tempo à religião, ao pertencimento ao povo hebreu e à nação proveniente desse local. No entanto, após a destruição desse estado, quando o país passou a província da Sírio-Palestina e colônia romana proibida aos judeus, no século II, o que os definia era apenas a religião e, mesmo espalhados, foram capazes de conservar certa unidade2.

A partir do momento em que o cristianismo se estabeleceu como religião oficial do império romano, todo e qualquer proselitismo judeu era ameaçador e, portanto, não aceito. Com o passar do tempo, o antijudaísmo ultrapassaria a dimensão teológica e se tornaria popular, de forma que males que assolavam a Europa medieval, como epidemias de peste ou de cólera, eram frequentemente atribuídos aos judeus, justificando massacres e perseguições, como os ocorridos durante a Inquisição. Em razão desse sentimento antijudaico, eles foram obrigados a viver em guetos e proibidos de exercer várias ocupações, ficando restritos a poucas atividades como o comércio de roupas usadas e o empréstimo de dinheiro, que era proibido aos cristãos2. Dessa forma, é possível compreender porque Ramazzini dedicou um capítulo às doenças de um povo (os judeus) em seu livro que, de regra, está organizado de acordo com as ocupações. Em outras palavras, a costura passou a ser uma ocupação típica de judeus. E não uma escolha.

As doenças descritas por Ramazzini estão relacionadas a pessoas pobres e discriminadas, sem autonomia e liberdade, que se dedicavam à costura de roupas velhas ou tratamento de utensílios usados, como os colchões, sempre expostos a muita sujeira e poeira, em ambientes mal ventilados e iluminados: doenças pulmonares, oculares e cutâneas, predominantemente.

O tratamento proposto à luz do conhecimento da época consistia em ginástica corporal, afastar as mãos e olhos da mesa de trabalho durante algumas horas, purgações e cobrir o rosto e o nariz para que as partículas aéreas não chegassem tão facilmente ao interior do corpo.

O olhar ramazziniano sobre os trabalhadores discriminados — como no caso do capítulo sobre as "Doenças dos judeus" — pode ser aplicado à sociedade contemporânea, em diversos contextos sociais.

Nas décadas de 1960 e 1970, durante a fase de crescimento econômico brasileiro e de investimentos em infraestrutura, era grande a participação de trabalhadores emigrados do Nordeste do país na mão de obra da construção civil, resultado da extrema pobreza que assolava a região. Fugindo da fome e da miséria, esses trabalhadores migrantes encontravam trabalhos sem nenhuma proteção, perigosos e insalubres e, muitas vezes, acabavam pagando um preço muito alto por isso, até mesmo com a própria vida. O tema dos acidentes nesse setor acabou inspirando a bela poesia que compõe a música Construção na qual também o preconceito e a questão social surgem em seus versos, especialmente quando se vê o trabalhador morto como um "pacote bêbado"3.

Com a globalização, a expansão da injustiça social e as guerras, os movimentos migratórios de refugiados e migrantes econômicos levam milhões de trabalhadores, muitas vezes qualificados em seus países, a aceitar condições precárias de trabalho. Em São Paulo, por exemplo, é comum observar que haitianos se dedicam ao comércio ambulante e ilegal, sem nenhum tipo de proteção social, por causa da barreira do idioma e do preconceito. No Norte do país, cresce o número de imigrantes venezuelanos que vivem de "bicos", em condições de vulnerabilidade, precisando recorrer, inclusive, à prostituição. Tornar-se profissional do sexo parece também ser um dos destinos dos transexuais, vítimas constantes de agressões e preconceito que lhe fecham as portas para o trabalho formal. A vulnerabilidade geográfica surge também nas estatísticas dos libertos de trabalhos análogos à escravidão que são, frequentemente, procedentes de estados com menor Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) no país. Em 2011, o Maranhão respondia por 23,5% dos casos de trabalho escravo registrados no Brasil4.

Mais de 300 anos depois, Ramazzini ainda nos provoca a pensar naqueles que são habitualmente esquecidos e menosprezados pela sociedade em que vivem, por serem minorias ou por ocuparem um lugar social que lhes é destinado pela pobreza, preconceito e discriminação. Como profissionais de saúde e de segurança, é nosso dever identificar essas situações de vulnerabilidade para ajudar a promover o trabalho digno para todos, o que inclui a eliminação de todas as formas de discriminação em matéria de emprego e ocupação5. Como cidadãos brasileiros e do mundo, é nosso papel contribuir para alcançar os objetivos do desenvolvimento sustentável para 2030, incluindo a redução da desigualdade, que passa por empoderar e promover a inclusão social, econômica e política de todos, independentemente de idade, gênero, deficiência, raça, etnia, origem, religião, condição econômica ou outra.

 

REFERÊNCIAS

1. Ramazzini B. As doenças dos trabalhadores. 4ª ed. São Paulo: Fundacentro; 2016.

2. Morin E. Le monde moderne et la condition juive. Lonrai (Orne- France): Éditions Points; 2012.

3. Holanda CB. Construção [Internet]. 1971 [citado em 10 out. 2017]. Disponível em: https://www.letras.mus.br/chico-buarque/45124/

4. ONG Repórter Brasil. Maranhão possui o maior número de casos de trabalho escravo registrado no Brasil [Internet]. 2011 [citado em 10 out. 2017]. Disponível em: http://reporterbrasil.org.br/2011/02/maranhaopossui- maior-numero-de-casos-de-trabalho-escravo-registrado-no-brasil/

5. Organização Internacional do Trabalho Brasil. Trabalho decente no Brasil [Internet]. [citado em 10 out. 2017]. Disponível em: http:// www.ilo.org/brasilia/temas/trabalho-decente/lang--pt/index.htm

6. Organização das Nações Unidas. Objetivos de Desenvolvimento Sustentável [Internet]. [citado em 10 out. 2017]. Disponível em: https://nacoesunidas.org/pos2015/ods10/

Recebido em 21 de Agosto de 2017.
Aceito em 18 de Novembro de 2017.

Trabalho realizado na Faculdade de Ciências Médicas da Universidade de Campinas (FCM/UNICAMP) – Campinas (SP), Brasil.

Fonte de financiamento: nenhuma


© 2024 Todos os Direitos Reservados