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Acesso aberto Revisado por Pares
EDITORIAL

A riqueza mineral e os riscos ao meio ambiente e à saúde

Mineral wealth and environmental and health risks

Frida Marina Fischer1; Elizabeth Costa Dias2

DOI: 10.5327/Z167944352019v17n1EDT

Quantas toneladas exportamos
De ferro?
Quantas lágrimas disfarçamos
Sem berro?...
1
(Carlos Drummond de Andrade)

A abordagem integrada das relações entre produção (trabalho), consumo, ambiente e saúde ganhou destaque a partir dos recentes desastres ambientais, ou mais corretamente denominados acidentes de trabalho ampliados, ocorridos na atividade de mineração em Minas Gerais, nas empresas Samarco em Mariana em novembro de 2015 e na Vale em Brumadinho, em 25 de janeiro de 2019. As notícias largamente divulgadas na grande mídia nos últimos meses dão conta do imenso risco potencial das barragens no Brasil. Por exemplo, notícia publicada no sítio eletrônico BBC Brasil em 31 de janeiro de 2019 mostra o grande número de barragens com elevado potencial de estrago2.

Em sintonia com a comoção social produzida e as análises técnicas desses eventos, a RBMT convidou alguns renomados estudiosos do tema a colaborar com artigos de opinião e estudos sobre esses eventos, contribuindo para a informação e o debate na busca de alternativas para evitar a repetição.

Assim, temos o privilégio de oferecer aos nossos leitores, reflexões atualizadas e de excelente nível técnico que tentam responder perguntas e analisar a tragédia ocorrida em Brumadinho. São apresentados, nos três artigos publicados, dimensões, conceituais, metodologias e explicativas, na perspectiva de identificar e estimar suas consequências para a saúde dos trabalhadores e da população geral e para o ambiente. Têm também esses artigos o objetivo de contribuir para a prevenção de novas ocorrências e a organização da atenção à saúde das pessoas envolvidas.

No texto preparado pelos pesquisadores Laerte Idal Sznelwar, Mauro Zilbovicius, Cláudio Marcelo Brunoro, Bernardo Luiz Rodrigues de Andrade e José Roberto Castilho Piqueira, da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo, “Brumadinho — entre a prudência e a probabilidade, a tragédia”, os autores analisam a sequência de eventos que culminou com o rompimento da barragem e refletem sobre os porquês da ocorrência, considerando o conhecimento técnico sedimentado sobre a engenharia de barragens de rejeitos no país e no mundo. Além de identificarem o conjunto e eventos articulados que levaram ao rompimento, eles questionam a “certeza absoluta” e a possibilidade da engenharia de projetar, gerenciar e evitar eventos nocivos. Essas questões são agravadas, na atualidade, pelo ideário neoliberal e gerencialismo, disseminado nas empresas privadas e públicas, segundo o qual o retorno do investimento o mais rápido possível para os investidores se sobrepõe a qualquer outro interesse que não o financeiro. O foco na produção em si é deslocado e os gestores devem ser capazes de gerenciar qualquer tipo de produção, desde que mantenham o foco no retorno rápido.

Na análise do acidente do trabalho e de seus impactos ambientais, os autores citados chamam atenção para a obsolescência dos métodos tradicionais de culpabilização do trabalhador, em especial dos que morrem e que não podem mais se defender. Destacam a contribuição das ciências do trabalho, com particular ênfase na ergonomia da atividade. Essa valoriza o relato dos envolvidos para construir uma narrativa que identifique problemas na produção, a sequência de não conformidades e o mau funcionamento antes do evento ocorrer. Isso permitiria conhecer o real da produção e, assim, construir abordagens mais adequadas sobre os riscos e sua prevenção, desnudando as relações de poder e dominação reforçadas pela diminuição da força das representações dos trabalhadores.

No texto “Origens históricas e organizacionais do desastre da barragem do Córrego do Feijão”, os autores Ildeberto Muniz de Almeida, do Departamento de Saúde Pública da Faculdade de Medicina de Botucatu (Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”), José Marçal Jackson Filho, pesquisador titular da Fundacentro, e Rodolfo Andrade Gouveia Vilela, professor sênior do Departamento de Saúde Ambiental da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo, utilizam o modelo de análise e prevenção de acidentes (MAPA) para explicar o acidente e criticam a abordagem técnica, que consideram restrita.

O MAPA se organiza em quatro eixos de análise: o funcionamento normal; as barreiras; e as mudanças a partir da ampliação de conceitos trazidos de diversos campos do conhecimento, especialmente aqueles usados em estudos de acidentes e/ou desastres. Busca-se entender as dimensões humanas, tecnológicas e organizacionais envolvidas no desastre. Segundo os autores, esse método de avaliação permite identificar os processos de decisão nos diversos níveis da empresa que levam a uma possível normalização de desvios e migração do sistema para acidentes, processo no qual os gestores e operadores convivem com a gestão de crises ou objetivos conflitantes. Os autores constroem uma narrativa e explicações para o ocorrido, considerando a rede de múltiplos fatores em interação entre si e com o ambiente físico, organizacional, político e econômico, enraizada na história do sistema em questão. Além disso, destacam a fragilidade do modelo brasileiro de prevenção de desastres em decorrência da submissão à influência da empresa sobre os órgãos públicos de controle e fiscalização.

Finalizando essa série, o texto “Acidentes de Trabalho que se tornam Desastres: os casos dos rompimentos em barragens de mineração no Brasil, preparado pelos pesquisadores Carlos Machado de Freitas e Mariano Andrade Silva, do Centro de Estudos e Pesquisas em Emergências e Desastres em Saúde da Escola Nacional de Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, aborda os impactos intensivos e diretos sobre trabalhadores e comunidades e os efeitos extensivos no espaço e tempo, irreversíveis e de difícil gestão.

Os autores destacam a gravidade do acidente de trabalho ocorrido em Brumadinho, considerado o mais grave já registrado no Brasil e ressaltam a possibilidade de que se torne um marco nos sistemas de gerenciamento de riscos das atividades de mineração no país. Ao jogar luz sobre um universo de anormalidades transformadas em normalidades no cotidiano das corporações, o evento ocorrido abala a confiança em todo o sistema de prevenção e controle de riscos de acidentes e desastres em barragens de mineração e permite extrair lições no sentido de mudar as lógicas vigentes de modo intersetorial e participativo.

Além disso, os autores reiteram o conceito de que são acidentes de trabalho (ATs) combinados com impactos que se ampliam no espaço, atingindo centenas de quilômetros além do local de origem, e no tempo por promoverem alterações ecológicas e contaminações cujos efeitos podem se prolongar por anos e décadas, e por isso denominados como acidentes de trabalho ampliados (APAs). Também chamam atenção para as rupturas no cotidiano dos territórios onde ocorrem, com grandes perdas e danos materiais, econômicos e ambientais e impactos na saúde das populações que ultrapassam as capacidades de respostas das comunidades, municípios e regiões atingidas.

Características do ambiente empresarial e governamental favorecem a transformação de anormalidades em normalidades: o Estado tem regulamentos mas pouco ou nada regula; e as empresas realizam ou contratam avaliações de risco, sob seu estrito controle, para que seja atestada a segurança da atividade. Esse gerenciamento artificial do risco, conforme salientam os autores, constitui um tipo de gestão destinado a construir uma imagem de que há efetivos controle e prevenção de acidentes, ao mesmo tempo em que embaça a visão do real e cala as vozes dissonantes de trabalhadores, sindicatos e movimentos sociais que insistem em dizer que há algo errado. Um universo em que tudo que parece sob controle e seguro se desmancha no ar...

Vencido o luto, espera-se que esses eventos propiciem mudanças no modelo de desenvolvimento baseado no extrativismo para que os custos ambientais e humanos sejam efetivamente considerados e não sejam externalizados, perpetuando as injustiças ambientais produzidas pela violação dos direitos dos trabalhadores e comunidades; e que os conflitos de interesses sejam expostos e enfrentados com efetiva participação da sociedade. A partir daí será possível reformular os modelos de análise e governança dos riscos, com o fortalecimento dos órgãos governamentais e a participação efetiva da sociedade por meio de suas representações organizadas, para pensar saídas para essa crise civilizatória que atravessamos e que coloca em risco a vida dos trabalhadores diretamente envolvidos na produção, das populações do entorno e dos ecossistemas.

 

REFERÊNCIAS

1. Andrade CD. Lira Itabirana. 1984.

2. Costa C. Brumadinho: Brasil tem mais de 300 barragens de mineração que ainda não foram fiscalizadas e 200 com alto potencial de estrago. BBC News Brasil [Internet]. 2019 [acessado em 15 fev. 2019]. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-47056259


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