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ARTIGO ESPECIAL

Acidentes de trabalho que se tornam desastres: os casos dos rompimentos em barragens de mineração no Brasil

Work accidents which become disasters: mine tailing dam failures in Brazil

Carlos Machado Freitas1,2; Mariano Andrade da Silva1,2

DOI: 10.5327/Z1679443520190405

RESUMO

O recente rompimento da barragem da mineradora Vale S.A., em 2019, figura entre os mais graves acidentes de trabalho já registrados no Brasil e caminha para se tornar um marco no sistema de gerenciamento de riscos dessas atividades no país. Ele caracteriza-se como um evento que envolve desde impactos intensivos e diretos sobre trabalhadores e comunidades a efeitos extensivos no espaço e tempo, irreversíveis e de difícil gestão. Rompimentos de barragens não são eventos raros, porém, apesar da baixa frequência, configuram uma fratura exposta de um universo de anormalidades transformadas em normalidades no cotidiano das corporações. Acidentes de trabalho como esse e o da Samarco em 2015 abalam a confiança em todo o sistema de prevenção e controle de riscos de acidentes e desastres em barragens de mineração. Devemos extrair lições dos mesmos com o sentido de mudar as lógicas vigentes de modo intersetorial e participativo.

Palavras-chave: acidentes de trabalho; desastre industrial; saúde do trabalhador.

ABSTRACT

The recent Vale S.A. dam failure in 2019 is one of the most serious work accidents ever in Brazil and is becoming a milestone for mining risk management systems in the country. It is characterized as an incident with irreversible and hard-to-manage intensive and direct impacts on workers and extensive impacts in space and time. Despite their low frequency, dam failures are not rare, but represent an open fracture in an universe in which abnormalities become the normal state of affairs in the everyday routine of corporations. Work accidents like this one and that involving the Samarco dam in 2015 undermine the trust in the entire mine tailings dam failure risk prevention and control system. We need to learn from these incidents to change the ideas and methods in vigor in an intersectoral and participatory manner.

Keywords: accidents, occupational; industrial disaster; occupational health.

INTRODUÇÃO

Entre o fim de 2015 e o início de 2019, o Brasil registrou os dois mais graves desastres do século XXI envolvendo barragens de mineração. Ao terem origem nos processos produtivos relacionados à mineração e à disposição dos seus rejeitos, constituem-se primariamente como acidentes de trabalho (ATs) combinados com impactos que se ampliam no espaço (centenas de quilômetros além do local de origem) e no tempo (alterações ecológicas e contaminações cujos efeitos podem se prolongar por anos e décadas), denominados por alguns de acidentes de trabalho ampliados (APAs). Ao mesmo tempo, ao produzirem interrupções e rupturas no cotidiano dos territórios onde ocorrem, com grandes perdas e danos (materiais, econômicos e ambientais) e impactos na saúde das populações que sobrepujarem as capacidades de respostas das comunidades, municípios e regiões mais diretamente atingidas, constituem-se também como desastres.

Para demarcar que são primariamente ATs, que se convertem em APAs ou, mais especificamente, em desastres, utilizaremos a combinação de uma abreviação e uma palavra: ATs/desastres. Com isso procuramos não só ampliar o olhar sobre esses eventos, mas também estabelecer, ao final, a necessidade de diálogos, propostas e ações intersetoriais que envolvam os setores trabalho e trabalhadores com os de saúde, meio ambiente, mineração, serviço social e também os movimentos sociais de atingidos por barragens, como o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), por exemplo.

No AT/desastre da Samarco (uma subsidiária da Vale S.A.) em 2015, foram 19 óbitos, dos quais 14 (74%) foram de trabalhadores, envolvendo 50 milhões de m3 de lama de rejeitos, atingindo 36 municípios em uma extensão de 650 km ao longo do Rio Doce1. O AT/desastre da Vale S.A., em 2019, entre desaparecidos (que dificilmente serão encontrados com vida após um mês de buscas) e óbitos, totaliza mais de 300 vítimas. Destas, 131 (42%) eram trabalhadores diretos da Vale e os outros 177, classificados conjuntamente como terceirizados/comunitários. Além de vítimas, esse evento envolveu 13 milhões de m3 de lama de rejeitos, atingindo, ao menos, 18 municípios em uma extensão de 250 quilômetros. Em ambos, os impactos socioambientais nas bacias dos rios Doce e Paraopeba foram imensos, envolvendo grande quantidade de rejeitos e elevados níveis de contaminação por metais pesados, afetando as condições de vida e trabalho de milhões de pessoas ao longo dos rios e ameaçando os serviços ecossistêmicos e os modos de sobrevivência das futuras gerações2,3.

A partir da análise de ambos ATs/desastres e tendo como referências dados globais, procuramos caracterizar alguns elementos comuns aos desastres de barragens de mineração e as tendências atuais. Características e tendências que se tornam extremamente perigosas quando anormalidades são transformadas em normalidades, constituindo as bases de gerenciamento artificial de riscos e dos sistemas abstratos de confiança. Pretendemos com isso subsidiar as discussões sobre a prevenção desses eventos e contribuir para a redução dos riscos e suas consequências sobre a vida e saúde dos trabalhadores e população geral numa perspectiva intersetorial e, por conseguinte, interdisciplinar.

 

ROMPIMENTOS DE BARRAGENS NÃO SÃO TÃO RAROS, MAS NO BRASIL SE TORNARAM ROTINA

Embora os graves ATs/desastres em barragens de mineração pareçam uma excepcionalidade, pois assim querem nos fazer crer, são mais frequentes do que se imagina. Na base de dados World Mine Tailings Failures (WMTF), que cobre um período de pouco mais de 100 anos (1915 a 2019) há o total de 356 registros. No Gráfico 1, selecionamos os eventos de maior gravidade distribuídos pelo grau de severidade das falhas e acidentes. Verifica-se que há um crescimento dos eventos principalmente a partir da década de 1960 e o crescimento das falhas graves e muito graves a partir dos anos 1980 (Gráfico 1). Em relação ao registro de óbitos, nota-se crescimento ao longo dos anos 1960 com redução nas décadas seguintes. A partir dos anos 1990 essa tendência volta a ser ascendente.

 


Gráfico 1. Ocorrência de rompimentos de barragens nos anos 1915 a 2019.

 

Conforme podemos ver no Quadro 1, tomamos como referência a base de dados do WMTF, a partir da seleção daqueles que consideramos os mais graves do ponto de vista dos impactos humanos (acima de dez óbitos). Como resultado, podemos verificar que ao longo dos últimos anos esses tipos de eventos são relativamente recorrentes, ocorreram 27 ATs/desastres considerados muito graves. Verifica-se que a China foi o país com o maior número de eventos desde os anos 1960. Só outros dois países tiveram mais de um registro, que foram a África do Sul nos anos 1970 e 1990 e o Brasil em 2015 e 2019, e esse último foi o maior dos últimos 40 anos e o segundo em termos de vítimas fatais imediatas. Do total de 27 eventos, apenas dois ocorreram em países centrais (Reino Unido e Estados Unidos) nos anos 1960/70, todos os outros ocorreram em países periféricos e semiperiféricos da economia global.

 

 

No que se refere ao padrão de registros de ATs/desastres envolvendo barragens de rejeito de mineração, a Comissão Internacional sobre Grandes Barragens (ICOLD) aponta que, das 221 falhas registradas, entre 1915 e 2001, todas eram evitáveis: “existia conhecimento técnico para construir e manter instalações de armazenamento de rejeitos de maneira segura, porém a deposição em volume acima do permitido combinado com um gerenciamento inadequado foi relatado como principal causa das falhas”5.

Um estudo realizado por Bowker & Chambers6 analisou 214 falhas em sistemas de barramento de rejeito de mineração entre os anos 1940 e 2010. Durante o período do estudo ocorreram 67 (31%) falhas graves (>100 mil m3 e/ou envolvendo óbitos) e muito graves (>1 milhão de m3, extensão de 20 km ou mais e/ou >20 óbitos). Quando considerados apenas os anos 1990 a 2010, ocorreram 52 falhas em barragens, sendo 17 graves e 16 muito graves, respondendo por 63% (33/52) do total de registros para o período. Os dados apresentados no estudo demonstram ascensão da proporção de eventos envolvendo falhas graves e muito graves nas décadas mais recentes, sugerindo que a incidência desse tipo de evento está se tornando cada vez maior.

Rico et al.7, ao analisarem 147 incidentes de grande porte envolvendo barragens de mineração, apontam que 55,9% dos casos ocorreram em barragens com mais de 15 metros de altura e 22% envolveram barragens superiores a 30 metros. Do número total de falhas, 83% ocorreram quando a barragem estava ativa, 15% em barragens inativas e abandonadas e apenas 2% das falhas ocorreram em barragens inativas, porém com manutenção. O método de construção de barragens que representa o maior número de incidentes está associado ao método a montante, representando 76% dos casos. As barragens de rejeitos a jusante e de linha de centro representam 15 e 5% dos casos globais, respectivamente.

No Brasil, o colapso da barragem B1 da Vale S.A. figura entre os mais graves de uma série de rompimentos que ocorreram entre 2001 e 2019 no território nacional8. Nos dois casos (Samarco 2015 e Vale 2019), as barragens que se romperam eram classificadas no critério de risco (CR) baixo (quando a documentação da barragem está dentro do preconizado pela legislação, o que remeteria a uma percepção de boa administração e com probabilidade baixa de acidente) e dano potencial associado (DPA) alto (proximidade de concentração populacional e integridade ecológica apresentando consequências, no caso de rompimento, graves). O modelo tecnológico de construção de barragem era realizado por alteamento a montante, utilizado por ambas as mineradoras, que é o mais barato, porém o menos seguro, conforme vimos no parágrafo anterior. No dia do rompimento, a barragem da Samarco tinha capacidade de armazenamento de cerca de 50 milhões de m3 9 e altura entre 106 e 108 m a partir de sua base. A Barragem I de Brumadinho tinha 86 metros de altura e armazenava quase 13 milhões de m3 de rejeitos10.

Em ambos os ATs/desastres, houve falha nos sistemas de monitoramento e de alerta do rompimento. No caso da Vale S.A. em Brumadinho, teve-se o agravante de o refeitório (com capacidade para atender até 200 pessoas) e o prédio administrativo estarem localizados em uma área industrial, cerca de um quilômetro da barragem e que seria atingida de modo direto e rápido em apenas um minuto, sem alternativas para evacuações. Combinou, por um lado, falhas graves de projeto e operação, miopias gerenciais e organizacionais e negligências empresariais para com a vida dos trabalhadores, das populações expostas e do meio ambiente. Por outro, houve o desmonte do papel do Estado a partir dos anos 1990 nas suas capacidades de regulação e fiscalização de riscos nas atividades de extração e produção industrial. Soma-se a ambos processos, o modo como se deu o processo de privatização da Vale do Rio Doce no final dos anos 1990, de modo que a combinação desses processos parece ter contribuído para a elevação de ATs/desastres em barragens de mineração no país, tornando-os uma quase rotina e tendo como desfecho o mais grave acidente de trabalho já registrado no país11.

 

O GERENCIAMENTO ARTIFICIAL DE RISCOS TRANSFORMA ANORMALIDADES EM NORMALIDADES

Os ATs/desastres não ocorrem em um vácuo. Se por um lado não são raros, só parecem tornar-se rotina quando encontram um ambiente empresarial e governamental que favorece que anormalidades sejam transformadas em normalidades, constituindo o que Freitas et al.12 denominam de “gerenciamento artificial de riscos”. Constitui um tipo de prática de gestão de segurança e riscos que combina um conjunto de ações e processos que ocorrem quando órgãos governamentais e empresas visam construir uma imagem de que há um efetivo controle e prevenção de acidentes, ao mesmo tempo que procuram tornar cada vez mais opaca a visão do seu universo e caladas as vozes dissonantes de trabalhadores e sindicatos que insistem em dizer que há algo de errado.

A legislação brasileira de barragens (Lei nº 12.334, de 20 de setembro de 2010) estabelece que é responsabilidade do empreendedor garantir a segurança de suas estruturas e que a fiscalização das atividades de mineração é compartilhada entre a Agência Nacional de Mineração (ANM) e os órgãos ambientais licenciadores estaduais. O cadastramento é realizado com o fornecimento unilateral de informações pela empresa. Ocorre que essa mesma declaração de risco é usada para determinar quais estruturas terão prioridades na fiscalização, criando a possibilidade de distorção dos fatos por empresas que queiram evitar a fiscalização13.

Auditoria realizada após o rompimento da Barragem de Fundão (BRF), da mineradora Samarco, pelo Ministério do Trabalho, revelou um anormal histórico de falhas que se iniciam no processo de licenciamento, mas também denotam problemas durante sua construção, operação e administração que, a partir dessa sequência de falhas, tornaram a estrutura mais frágil, culminando em seu colapso.

A Samarco perseguiu uma expansão agressiva da produção, promovendo, através de mecanismos escusos, buscar flexibilizar procedimentos regulatórios e de licenciamento envolvendo desde decisões de aumento de produtividade, como também diminuição dos investimentos na área de segurança em 44% entre os anos de 2015 e 201614. A BRF teve seu Licenciamento Ambiental acelerado, o processo iniciou-se em 2005, sendo a primeira licença de operação (LO) concedida em 2008 — licença que se encontrava em processo de renovação no dia do rompimento. Da primeira LO até o desastre, várias mudanças na estrutura ocorreram. A estrutura foi modificada duas vezes entre 2008 e 2015, cada vez passando por um breve processo de licenciamento que, por exemplo, não contou com a realização de audiências públicas. Em setembro de 2014, o engenheiro projetista da barragem alertou sobre um princípio de ruptura que apareceu após a modificação da estrutura. Em junho de 2015, a mineradora recebeu as licenças para ampliação da BRF e posterior unificação com a barragem de Germano, que também estava sendo alterada14.

Após o rompimento, como uma fratura exposta da empresa, um universo invisível tornou-se visível, sendo revelado que a BRF contava com um dreno de deposição de rejeito “clandestino”, não referenciado no processo de licenciamento, fruto da atividade da mineradora vizinha, Vale S.A. (Mina Alegria), em Mariana, que correspondeu, em 2014, por 28% dos efluentes líquidos lançados na BRF1. Na investigação realizada pelo Ministério do Trabalho15, uma gama de problemas na barragem foram constatados e negligenciados por longos períodos de tempo, entre eles: crescimento acelerado, com média de 11 metros por ano, sendo os maiores em 2011 (20 metros/ano) e em 2014 (14,6 metros/ano), enquanto que o alteamento seguro estaria entre 4,57 e 9,14 metros por ano; elevada saturação dos rejeitos, resultado da deposição em volume superior do que o permitido no projeto; falhas no sistema de monitoramento do nível de água; número insuficiente de equipamentos de auscultação (conjunto de instrumentos, formas de observação e controle das condições de segurança da barragem); equipamentos com defeito; e deficiência do sistema de drenagem.

Quatro meses antes do rompimento da BRF, o engenheiro funcionário da VOGBR Recursos Hídricos e Geotecnia, responsável pela elaboração do laudo de estabilidade de Fundão, exigência da Política Nacional de Segurança de Barragens (PNSB) (Lei nº 12.334), entregou o documento após breve inspeção na barragem. O laudo atestava a segurança da estrutura para os órgãos fiscalizadores e condicionava a execução de procedimentos de segurança. O estudo foi entregue sem que os piezômetros (equipamentos utilizados para a auscultação da barragem) instalados na ombreira esquerda, onde várias anomalias haviam sido registradas, fossem aferidos. Eram esses equipamentos fundamentais, portanto, para o monitoramento da barragem. O mapa do conjunto de equipamentos deve constar na Carta de Risco, documento que a empresa deve atualizar de acordo com a evolução da estrutura e seus alteamentos. Inexplicavelmente, a última atualização do documento de referência fora feita em agosto de 2013. Não incorporava, portanto, os mecanismos de aferição recomendados, em 2014, pelo engenheiro projetista da BRF, após a inspeção das trincas da ombreira esquerda13.

Em seu depoimento à polícia civil, o engenheiro da VOGBR disse que coletou os dados e que o fato de não ter analisado todos os instrumentos disponíveis não prejudicou a acuidade de seu trabalho. Ao emitir o documento, fez ressalva: “A Samarco deverá atualizar a Carta de Risco pois os alteamentos são constantes, correspondendo, no ano de 2014, a uma taxa de 15 m em até 11 etapas consecutivas”13. O Ministério Público Federal (MPF) considerou o documento enganoso por se basear em Carta de Risco desatualizada e não incluir a análise de toda a instrumentação1.

A Mina Córrego do Feijão iniciou suas atividades no ano de 1956 por meio da Cia de Mineração Ferro e Carvão. Em 1973, passou para o controle da Ferteco Mineração e desde 2003 é dirigida pela Vale. A planta minerária possui infraestrutura de lavra e beneficiamento mineral, sete barragens, além de estruturas de apoio e administrativas.  A barragem B1 era classificada como uma estrutura de pequeno porte com baixo CR e alto DPA. Em dezembro de 2018, a Vale obteve licença para exercer atividade de recuperação de finos das Barragens I e VI e ampliar a capacidade produtiva da mina. Com isso, a vida útil do empreendimento seria prolongada até 203218.

No caso Vale, a barragem B1 não recebia rejeitos desde 2014 e possuía declarações de estabilidade física e hidráulica emitidas pela empresa TÜV SÜD do Brasil. Segundo a consultoria, todas as inspeções realizadas não foram capazes de detectar quaisquer alterações no estado de conservação da estrutura19, porém as primeiras investigações apontam que existiam diversas rachaduras na estrutura da barragem e que reclamações eram recorrentes entre os trabalhadores da mineradora20. O relatório aponta que a direção da empresa tinha conhecimento do risco e que os engenheiros da TÜV SÜD, que assinaram as declarações de estabilidade mencionadas, foram pressionados pela diretoria para emissão do laudo.

Ambos os ATs/desastres representaram verdadeiras fraturas expostas, permitindo-se vislumbrar um universo de anormalidades transformadas em normalidades no cotidiano da gestão dos riscos de rompimentos de barragens. Um universo em que o Estado tem regulamentos, mas pouco ou nada regula, e em que empresas do universo de avaliações de riscos (VOGBR and TÜV SÜD, nesses casos) contratadas pelas próprias empresas (Samarco e Vale SA) criadoras dos riscos atestam que essas estão “seguras”. Nesse processo ocorre o gerenciamento artificial do risco, conforme conceito já citado12.

 

OS SISTEMAS ABSTRATOS DE CONFIANÇA, COM PLANOS E SIRENES QUE NÃO FUNCIONAM E NÃO SALVAM NINGUÉM

Como observa Giddens21, as instituições modernas encontram-se profundamente vinculadas aos sistemas abstratos ou peritos de confiança, os quais conectam as práticas locais às relações sociais globalizadas em questões decisivas, como segurança, risco e perigo. Esses sistemas abstratos de confiança são mediados, viabilizados e operacionalizados por um conjunto de instituições públicas (mineração, águas, meio ambiente, segurança e saúde, entre tantos outros) e privadas (empresas nacionais e globais de consultoria que produzem laudos) com seus peritos, cujo papel é propiciar para trabalhadores e comunidades expostas aos riscos de desastres uma sensação de segurança. Nesse universo dos sistemas abstratos que têm o objetivo de prover muito mais confiança do que segurança, embora a maior parte das barragens possam ser classificadas como possuindo dano potencial alto ou médio, a esmagadora maioria apresenta critérios de risco baixo, fazendo todos crerem que tudo está sob controle.

Entre as obrigações das empresas está a de providenciar a elaboração e a atualização do PSB, contemplada na Portaria ANM nº 70.389/2017. O PSB é de implementação obrigatória pelo empreendedor e deve ser elaborado até o início do primeiro enchimento da barragem, a partir de quando deverá estar disponível para utilização pela equipe de segurança, órgãos públicos e fiscalizadores. Seu objetivo é auxiliar a gestão da segurança da barragem. Deve conter informações gerais da barragem; Planos e Procedimentos; Relatórios de Inspeção; Revisão Periódica de Segurança de Barragem; e o Plano de Ação de Emergência (PAE), obrigatório apenas para as estruturas que apresentem DPA alto ou quando exigido pelo órgão fiscalizador.

Para a mineradora Samarco, o órgão ambiental havia exigido a instalação de sistemas de alerta como uma condicionante para o licenciamento, mas a empresa continuou operando mesmo sem seu cumprimento. A empresa alega a existência de um plano de monitoramento contínuo para sua barragem, assim como um PAE, incluindo simulações com trabalhadores e comunidades22. Para o MPF, o PAE não foi colocado em prática no dia do acidente, mostrou-se um plano de gaveta, falho e burocrático, prevendo apenas o uso de telefones para a comunicação de incidentes na barragem em uma área de difícil sinal de telefonia celular1. A empresa não dispunha de equipamentos simples como sirenes ou avisos luminosos ou outra forma eficaz de comunicação de emergência aos funcionários e terceirizados, bem como às comunidades a jusante; não existiam canais efetivos de comunicação; e não promoveu treinamento adequado aos envolvidos, de forma a orientá-los como se portar em situações de emergência. A perda de vidas só não foi maior devido à ação solidária de trabalhadores e pessoas residentes no local. Caso não houvessem ações independentes de alerta à população, a mortalidade teria sido muito maior. Mesmo comunidades distantes da barragem, onde a lama levou mais de 10 horas para alcançar após o rompimento, como o município de Barra Longa, não foram devidamente alertadas.

A Vale, em Brumadinho, possuía um PAE formalizado e, segundo a empresa, foi realizado simulado de emergência em junho de 2018 com a comunidade e órgãos de segurança pública, sob a coordenação das defesas civis. O PAE previa que, uma vez constatada uma situação de emergência, o coordenador do plano deveria informar o Centro de Controle de Emergência e Comunicação (CECOM) da empresa. Esse, por sua vez, acionaria as seis sirenes instaladas nas comunidades de entorno. Os moradores, a partir do acionamento da sirene, deveriam se deslocar aos pontos de encontro previamente informados23.

No dia do rompimento da barragem, em Brumadinho, Minas Gerais, as sirenes de alerta da mina Córrego do Feijão não foram acionadas, pois, segundo a empresa, a falha se deu “devido à velocidade com que ocorreu o evento”. A sirene que ia tocar foi atingida pela quebra da barragem antes que ela pudesse ser acionada, disse o CEO da Vale, após reunião com a procuradora-geral da República24. O comando que deveria partir da empresa para o CECOM também falhou, ao menos um dos funcionários responsáveis pelo repasse da informação morreu no ATs. Parte dos moradores questionam a ausência de informações precisas sobre quais locais seriam ou não seguros em caso de rompimento. Além dessas falhas, foi constatado que a lista dos contatos telefônicos das autoridades a serem avisadas em caso de rompimento estava desatualizada e mesmo os poucos contatos que estavam atualizados, como o do secretário do governo do município, não tocou no dia do ATs/desastre.

O gerenciamento artificial dos riscos no âmbito da empresa é acompanhando de sistemas abstratos de confiança, especialmente nos sistemas peritos, no qual as pessoas são leigas sobre os riscos reais de rompimento das barragens de mineração. Isso envolve um grande contingente dos trabalhadores diretos e terceirizados, bem como comunidades nas áreas que podem ser impactadas pela lama de rejeitos, que são levadas a acreditar que as empresas possuem planos de emergência que serão acionados em situações de desastres e que sistemas de alerta e alarme avisarão a todos; que as empresas informam os municípios e que esses possuem órgãos ativos de defesa civil que trabalham em harmonia com as mineradoras; que estão seguros e que se algo de errado ocorrer serão protegidos, pelas empresas e pelo Estado21.

Após o AT/desastre, o antes seguro sistema de classificação de risco utilizado pelas agências reguladoras torna-se inseguro, e o sistema de laudos passa a ser colocado em desconfiança pelo Ministério Público. Os sucessivos episódios envolvendo evacuações e acionamento de sistemas de alarme após o ATs/desastre da Vale em Brumadinho revelam a fratura exposta de um gerenciamento de riscos que parecia e era artificial, quebrando a confiança dos sistemas abstratos. Nas cidades de Ouro Preto, Nova Lima, Barão de Cocais, entre outras cidades mineiras, famílias foram removidas de regiões, que de uma hora para outra passaram a não ser mais consideradas seguras devido ao risco de rompimento de novas barragens.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Conforme procuramos demonstrar neste artigo, rompimentos de barragens não são tão raros, mas no Brasil parecem ter se tornado rotina, revelando um universo em que tudo que parecia sob controle e seguro se desmancha no ar. Aquilo que parecia ser normal nas práticas das empresas, nos laudos, nos licenciamentos, nas fiscalizações, nos planos de emergência que ficaram nas gavetas e nas sirenes que permaneceram em silêncio, revela-se como anormal. As práticas reais de gerenciamento de riscos acabaram por se romper junto com a barragem, revelando um mundo em que o gerenciamento artificial de riscos, permitindo que até refeitórios fossem deliberadamente construídos e funcionassem onde nenhum trabalhador poderia se salvar, era considerado “normal”. Rompeu-se mais do que a barragem, mas também a confiança em todo o sistema de prevenção e controle de riscos de ATs e desastres em barragens de mineração.

Nesses tipos de ATs/desastres, para além dos 19 ou mais de 300 óbitos como nos descritos aqui, outros efeitos em um futuro incerto (que vai dos meses aos anos seguintes) afetam trabalhadores e comunidades expostas. Além dos trabalhadores diretos das empresas e dos terceirizados que podem ter sido expostos à lama de rejeitos e seus contaminantes, há centenas de bombeiros que atuaram nas atividades de resgate; igualmente, os trabalhadores que realizam atividades agrícolas ou de pesca e que dependem da água que se tornou contaminada, tornando difícil separar quem é trabalhador de quem é “comunidade”. E, entre esses, há ainda a exposição à poeira da lama que seca, aumentando doenças respiratórias e dérmicas, como ocorrido no município de Barra Longa após o desastre da Samarco, combinando com o incremento de parasitoses, diarreias e gastroenterites; ansiedade, consumo de álcool e impactos na saúde mental; diabetes, hipertensão arterial e acidentes vasculares cerebrais; acidentes no processo de reconstrução e violências resultantes da desestruturação social que pode ocorrer; arboviroses e outras doenças ocasionadas por vetores e hospedeiros resultantes das grandes transformações ecológicas. Para além dos efeitos imediatos, há a sobreposição de riscos, danos e doenças que se prolongam no tempo25,26.

Esperamos que esses ATs/desastres possibilitem lições que resultem em mudanças profundas em nosso modelo de desenvolvimento baseado no extrativismo. Que os custos ambientais e humanos sejam efetivamente considerados e não externalizados; que os planos e ações de redução de riscos, que as injustiças ambientais e a violação dos direitos dos trabalhadores e comunidades não sejam tolerados; que as incongruências e contradições das políticas e ações governamentais e empresariais sejam expostas e enfrentadas com efetiva transparência e participação da sociedade.

Essas mudanças exigem a reformulação da situação atual dos modelos de compreensão e governança dos riscos, com o fortalecimento dos órgãos governamentais (com recursos humanos, técnicos e financeiros necessários) e ampliação da participação da sociedade através das representações das comunidades expostas e afetadas, organizações não governamentais, instituições acadêmicas e também de sindicatos. Para tal, apresenta-se como perspectiva de modificação e aplicação ao que se refere aos riscos de ATs/desastres em barragens de mineração:

• prevenir riscos futuros pela criação de novas barragens com tecnologias obsoletas e perigosas;

• reduzir os riscos existentes através da ampla força-tarefa de fiscalização e auditorias nas barragens de mineração existentes;

• desenvolver planos de emergência efetivos, seguros e intersetoriais que envolvam ampla participação social de trabalhadores e comunidades;

• estruturar sistemas de alerta e alarme que efetivamente contribuam para salvar vidas com exercícios regulares;

• fortalecer as capacidades de preparação e respostas nos municípios vulneráveis aos riscos de barragens nos seus órgãos de defesa civil, meio ambiente, saúde e assistência social;

• garantir que os processos de recuperação ambiental e da saúde das populações e trabalhadores afetados sejam combinados com a reconstrução melhor e mais segura das condições de vida e trabalho das pessoas.

Todos esses processos devem combinar a participação dos setores trabalho, saúde, serviço social, meio ambiente, águas e mineração, com transparência e participação de representações de trabalhadores e dos movimentos de atingidos por barragens.

 

REFERÊNCIAS

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Recebido em 11 de Março de 2019.
Aceito em 12 de Março de 2019.

Fonte de financiamento: Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).


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