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EDITORIAL

Medicina do trabalho para quê e para quem?

Occupational medicine: for whom? What for?

René Mendes

DOI: 10.5327/Z167944352019v17n3EDT

Convidado a escrever o editorial desta edição da Revista Brasileira de Medicina do Trabalho, que coincide com o encerramento da gestão da Associação Nacional de Medicina do Trabalho (ANAMT 2016-2019), e após me familiarizar com o rico conteúdo de artigos que estão sendo aqui publicados, decidi retomar, ainda que brevemente, um tema recorrente que me sensibiliza e me encanta - às vezes, me atormenta e me precupa muito - ao longo de 47 anos, isto é, desde 1972, ano de minha entrada na especialidade medicina do trabalho.

Admito que já estive muito mais animado em épocas pregressas e adianto que o atual desalento nada tem a ver com a minha idade - beirando os 74 anos -, mas sim com a constatação do que parece ser um crescente desvio de função de nossa especialidade no Brasil.

Com efeito, quando vejo o que se pratica em nome da medicina do trabalho, fico preocupado se tais práticas são compatíveis, primeiramente, com a profissão médica e, em seguida, se são elas pertinentes à nossa especialidade. Já me manifestei várias vezes sobre esse meu inconformismo a respeito das difunções, dos desserviços e dos malefícios que têm sido perpetrados em nome de uma suposta medicina do trabalho, e meu posicionamento crítico tem provocado reações hostis e, às vezes, injuriosas.

Ao aproveitar o gentil convite que recebi para escrever nesta coluna editorial, em que os editores e convidados podem exercer seu livre pensar, faço-o deixando essa reflexão acerca do que penso ser o objeto da medicina do trabalho e a quem ela se destina, retrocedendo, talvez, mais de 300 anos, para voltar ao médico italiano Bernardino Ramazzini (1633-1714) e sua imortal obra As Doenças dos Trabalhadores (1700)1.

Trezentos e dezenove anos poderiam ser tempo suficientemente longo para já estar mais do que consolidada a doutrina ramazziniana sobre a necessidade, a importância e a riqueza do ato médico em prol da saúde dos trabalhadores, mas também pode ser o contrário: tempo excessivamente longo, que já produz o esquecimento da essência dessa doutrina. Ramazzini foi um médico e professor de Medicina, e não propriamente um médico do trabalho. Arriscaria dizer que ele foi um verdadeiro médico do trabalhador e, por ele e para ele (ou ela, trabalhadora), praticou e ensinou a até então inédita doutrina de sua proteção e defesa, sobretudo diante da assimetria de forças e de poder que sempre marcou a trajetória desses nossos irmãos e irmãs mais vulneráveis!

Muitos outros mestres robusteceram essa doutrina. Para este breve editorial, escolhi outro médico famoso: o patologista alemão Rudolf Virchow (1821-1902), talvez uma das mais prominentes figuras médicas do século XIX. Com efeito, dele permanecem ricos ensinamentos, como, por exemplo, a afirmação categórica de que "a medicina é uma ciência social, e a política não é outra coisa senão a medicina em grande escala". E, ainda, "os médicos são os advogados naturais dos pobres, e os problemas sociais deveriam ser tratados por eles"2,3.

Vale lembrar que esse brilhante médico alemão é personagem que merece ser analisado - ainda que sinteticamente - por suas múltiplas e simultâneas versões, que incluem o patologista - talvez um dos fundadores da patologia geral científica -, o reformador social e um dos fundadores da medicina social, além do Virchow antropólogo, arqueólogo, biólogo, historiador, escritor, editor e político. Virchow pertence ao grupo seleto e raro de pessoas que conseguem ser múltiplas e únicas, sendo brilhantes em tudo o que fazem. Tinha a visão e a sensibilidade para estudar o universo microscópico da célula, dos tecidos, dos órgãos, dos sistemas, indo, porém, ao macroscópico da anatomia normal e patológica. Também, com a mesma desenvoltura, via universos maiores, como o do social e o do político, cuja visão pode ajudar a entender os problemas do povo, da sociedade, da nação, do mundo.

Mesmo que os ensinamentos do pai da patologia geral e da medicina social não sejam aplaudidos nos dias atuais, vale lembrar que o insuspeito Código de Ética Médica brasileira define, entre os princípios fundamentais, que "o alvo de toda a atenção do médico é a saúde do ser humano, em benefício da qual deverá agir com o máximo de zelo e o melhor de sua capacidade profissional"4. Em outro trecho, "o médico empenhar-se-á pela melhor adequação do trabalho ao ser humano, pela eliminação e pelo controle dos riscos à saúde, inerentes às atividades laborais"4. Lembrando que esses mandamentos são para todos os médicos e médicas! Então, o que dizer das obrigações dos médicos e médicas do trabalho?

Por outro lado, o também insuspeito Código Internacional de Ética para os Profissionais de Saúde no Trabalho, da Comissão Internacional de Saúde do Trabalho (ICOH, da sua sigla em inglês), estabelece que "o objetivo primário do exercício da saúde no trabalho é o de proteger e promover a saúde dos trabalhadores; promover um ambiente de trabalho seguro e saudável; proteger a capacidade de trabalho dos trabalhadores e seu acesso ao emprego"5. Em três ou quatro mandamentos estão todos os princípios da razão de ser da medicina do trabalho, sobretudo após a provocação do título deste editorial.

Enfim, e por necessária brevidade, talvez seja esse o momento de nos encaminharmos em direção ao término deste texto trazendo outra pergunta, dessa vez de autoria do filósofo e educador Mario Sergio Cortella, que intitula um de seus mais agradáveis livros: Por que fazemos o que fazemos?6. A pergunta, título do livro e de um de seus capítulos, pode ser repetida aqui, com a mesma leveza e também seriedade do filósofo. Ele o faz com o que denomina de "as grandes perguntas no 'juízo final'". Por certo, não um juízo final com conotação religiosa ou, menos ainda, jurídica, mas de um invisível e inclemente tribunal ético ou, talvez, bioético. Eis as quatro grandes perguntas:

• o que você fez, fez por quê?;

• o que você não fez, não fez por quê?;

• o que você fez e não deveria ter feito, por que o fez?;

• o que não fez e deveria ter feito, por que não o fez?

Portanto, sob as luzes inspiradoras dos ilustres médicos Ramazzini e Virchow, e relembrados, uma vez mais, os claros mandamentos éticos de médicos e médicas, assim como os de médicos e médicas do trabalho, proponho que as quatro perguntas de Cortella sejam respondidas por cada um de nós, individualmente, não por medo do veredicto do juízo final, mas como uma oportunidade para questionar e reavaliar (e, eventualmente, retificar, realinhar) o que

 

REFERÊNCIAS

1. Mendes R. A atualidade da obra de Ramazzini, 300 anos depois. In: Ramazzini B, editor. As Doenças dos Trabalhadores [Internet]. 4ª ed. Tradução de Raimundo Estrêla. São Paulo: Fundacentro; 2016 [acessado em 19 set. 2019]. p. 289-297. Disponível em: http://www.fundacentro.gov.br/biblioteca/biblioteca-digital/publicacao/detalhe/2016/6/as-doencas-dos-trabalhadores

2. Brown TM, Fee E. Rudolf Carl Virchow: medical scientist, social reformer, role model. Am J Public Health [Internet]. 2006 [acessado em 19 set. 2019];96(12):2104-5. Disponível em: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC1698150/

3. Eisenberg L. Rudolf Ludwig Karl Virchow, where are you now that we need you? Am J Medicine [Internet]. 1984 [acessado em 19 set. 2019];77(3):524-32. Disponível em: http://www.amjmed.com/article/0002-9343(84)90114-1/fulltext

4. Conselho Federal de Medicina. Código de Ética Médica: Resolução CFM nº 2.217, de 27 de setembro de 2018, modificada pelas Resoluções CFM nº 2.222/2018 e 2.226/2019 [Internet]. Brasília: Conselho Federal de Medicina, 2019 [acessado em 19 set. 2019]. 108 p. Disponível em: https://portal.cfm.org.br/images/PDF/cem2019.pdf

5. Comissão Internacional de Saúde do Trabalho. Código Internacional de Ética para os Profissionais de Saúde no Trabalho [Internet]. Curitiba: Associação Nacional de Medicina do Trabalho; 2016 [acessado em 19 set. 2019]. Disponível em: http://www.anamt.org.br/site/upload_arquivos/arquivos_diversos_28420161611117055475.pdf

6. Cortella MS. Por que fazemos o que fazemos? Aflições vitais sobre trabalho, carreira e realização. São Paulo: Planeta; 2016.


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