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ARTIGOS ORIGINAIS

O ensino da Medicina do Trabalho e a importância das visitas aos locais de trabalho

Teaching Occupational Medicine: the importance of students' visits to the working environment

Sergio Roberto de Lucca; Satoshi Kitamura

RESUMO

OBJETIVOS: Este artigo enfatizou a importância das visitas nos locais de trabalho no ensino de medicina do trabalho para os estudantes de Medicina.
MÉTODOS: Foram analisados 216 relatórios de visitas a pequenas, médias e grandes empresas de diferentes ramos de atividade e processos produtivos da região de Campinas, em São Paulo, Brasil. Por meio do método de análise de conteúdo, foram codificadas aprioristicamente algumas categorias: importância da anamnese ocupacional, significado das visitas, significado do trabalho no processo saúde-doença, percepção sobre as condições de trabalho e riscos à saúde, importância dos fatores de risco psicossociais e ergonômicos e medidas preventivas e uso de equipamento de proteção individual.
CONCLUSÕES: O conteúdo dos relatórios das visitas, destacados no texto, demonstrou a importância desta atividade na formação de futuros profissionais.

Palavras-chave: ensino; medicina do trabalho; locais de trabalho.

ABSTRACT

OBJECTIVE: This article showed how important are the visits to workplaces during occupational medicine classes to Medicine graduate students.
METHODS: Two hundred and sixteen student reports have been analyzed for this study. They visited small, medium, and big businesses comprising different productive processes, in the region of Campinas, State of São Paulo, Brazil. By analyzing the content of such reports, the observations have been classified into categories such as importance of occupational anamnesis, meaning of visits, significance of work in the work-and-health process, perception about work conditions and risks to health, importance of psychosocial and ergonomic risk factors and prevention measure, and use of personal protective equipment.
CONCLUSIONS: The content of these visit reports, detached in the present text, showed the actual significance of these activities for the education of the future professionals.

Keywords: education; occupational medicine; workplaces.

INTRODUÇÃO

Ainda que restrita em seus objetivos programáticos, a Medicina atual deveria voltar-se para suas origens hipocráticas a fim de atingir o que seria o motivo básico de sua atenção: a humanidade do homem. O objeto do médico deve ser o próprio homem e não apenas órgãos, sistemas, disfunções ou anormalidades. O médico, ou o futuro médico, precisa considerar os determinantes sociais no processo de saúde e doença e, em particular, nas condições de vida, saúde e trabalho relacionadas com aquelas de preservação da saúde ou do adoecimento.

Na presente sociedade, o trabalho é um fator fundamental de integração social e é muito relevante na vida das pessoas. Dependendo do trabalho, assim como das condições em que é realizado, pode ser considerado como fator de prazer ou mesmo de realização pessoal, mas também pode se constituir como fonte de adoecimento. A importância do trabalho e das condições de trabalho no processo de adoecimento ganhou destaque no novo código de ética médica1, ao assinalar no item XII dos princípios fundamentais: "O médico empenhar-se-á pela melhor adequação do trabalho ao ser humano, pela eliminação e controle dos riscos à saúde inerentes às atividades laborais"; "É vedado ao médico: deixar de esclarecer o trabalhador sobre as condições de trabalho que ponham em risco sua saúde, devendo comunicar o fato aos empregadores responsáveis" (artigo 12) e "deixar de esclarecer ao paciente sobre os determinantes sociais, ambientais ou profissionais de sua doença" (artigo 13).

A inclusão de tais artigos reflete, em parte, a importância na formação do médico do conhecimento das inter-relações saúde e trabalho na pratica diária. Como a maioria das doenças relacionadas ao trabalho apresenta um quadro clínico similar ao daquelas comuns, estabelecer o nexo com o trabalho muitas vezes não é tarefa fácil, em especial para o clínico que não está familiarizado com a anamnese ocupacional, com os fatores de risco presentes no ambiente de trabalho e com as atividades desenvolvidas pelo paciente trabalhador. Por esta razão, o Conselho Federal de Medicina2, em 1998, estabeleceu parâmetros para serem considerados no estabelecimento de nexo causal, destacando-se as histórias clínica e ocupacional, decisivas em qualquer diagnóstico e/ou investigação de etiologia, incluindo o vínculo com o trabalho.

O ensino da Medicina do Trabalho como parte integrante do currículo mínimo dos cursos de Medicina foi reconhecido em 1962 (Parecer 216 do Conselho Federal de Educação). No entanto, a maioria das escolas de Medicina no Brasil não ministra disciplinas ou matérias relacionadas à medicina do trabalho, à saúde ocupacional ou do trabalhador em suas grades curriculares, ou o faz com cargas horárias insuficientes3-6. Além disso, na maioria das escolas médicas predominam os conteúdos eminentemente teóricos, distantes da realidade do trabalho, enfatizando-se nos aspectos legais e nos riscos ocupacionais clássicos5-7.

O objetivo da disciplina é fazer com que o futuro médico, ao atender o paciente trabalhador, considere o ambiente ou as condições de trabalho como agravante de uma doença comum ou mesmo, desencadeador de uma doença do trabalho. Para bem exercer a sua missão, não poderá o médico deixar de indagar sobre a ocupação de seu paciente. Mesmo que o diagnóstico etiológico relacionando a doença de seu paciente ao trabalho lhe pareça remoto, ao menos deveria indagá-lo sobre sua atividade profissional, visando levantar a suspeita dessa etiologia, para considerar um eventual agravamento da doença original pelo trabalho. Portanto, o médico deve conhecer o trabalho em seus múltiplos aspectos, incluindo o modo como ele é executado, assim como o ambiente em que é realizado.

Neste sentido, durante a abordagem médico-paciente e trabalho, a clássica pergunta de Ramazzini8, "e que arte exerces", tendo as ressalvas de contemporaneidade guardadas, poderia ser complementada com outras perguntas da anamnese ocupacional, tais como: o quê e como você faz?; com quais produtos e instrumentos trabalha?; há quanto tempo?; como executa as suas atividades?; como se sente e o que pensa sobre seu trabalho?; conhece outros colegas com problemas semelhantes aos seus?; onde você trabalha?; desde quando? e quais as suas atividades anteriores?. Também é importante avaliar se as queixas e o quadro clínico possuem alguma relação com as atividades de trabalho.

O diagnóstico das doenças causadas ou agravadas pelo trabalho é também fortemente influenciado pelo conhecimento e pelo grau de consciência dos médicos sobre a existência do agente e a sua relação com a doença. Portanto, saber realizar a anamnese ocupacional e considerar e conhecer os ambientes de trabalho são fundamentais.

Este artigo, considerando a importância e a atualidade do tema no Brasil6-9 e em outros países10-12, teve por objetivo relatar uma experiência de ensino dentro do modelo problem-based learning (PBL), ou seja, discutir a importância do conteúdo prático de visitas aos ambientes de trabalho, relacionando-a com o conteúdo teórico de discussão de casos clínicos, como integrante da grade curricular de Medicina do Trabalho no curso de graduação em Medicina9,12,13. A experiência de mais de 30 anos de ensino deste tema é descrita pelos autores, apresentando como resultado da atividade prática a percepção dos alunos, a partir da transcrição literal de trechos dos relatórios das visitas realizadas pelos alunos do curso.

 

MÉTODOS

Trata-se de um estudo qualitativo de análise do conteúdo de relatórios individuais dos alunos, após a realização de visitas aos locais de trabalho dos alunos do quarto ano de graduação em Medicina. A disciplina de Medicina do Trabalho possui carga horária de 28 horas, com 20 de conteúdo teórico e 8, prático na forma de visitas a ambientes de trabalho. O curso se repete 12 vezes durante o ano, para grupos de nove alunos. As visitas, com duração média de três horas, são sempre acompanhadas por um docente. Após a discussão com os alunos dos aspectos e fatores de risco mais relevantes, solicitou-se a apresentação de um relatório individual.

Foram analisados 216 relatórios de visitas realizadas, entre março de 2010 e março de 2011, aos locais de trabalho de pequenas, médias e grandes empresas da região de diferentes ramos de atividade e processos produtivos: marmoraria, fabricação de baterias, metalurgia, cerâmica e indústrias de transformação. Utilizando-se o método para análise de conteúdo, após a fase de pré-exploração dos relatórios, seguiu-se para a de seleção, por meio da codificação das unidades de análise, as quais foram classificadas a priori nas seguintes categorias: importância das visitas, importância da anamnese ocupacional, significado do trabalho, percepção sobre as condições de trabalho e riscos à saúde, fatores de risco psicossociais, fatores de riscos ergonômicos e os distúrbios osteomusculares relacionados com o trabalho (DORT). Seguiu-se ao processo de validação do conteúdo do primeiro pelo segundo pesquisador.

 

RESULTADOS

Adota-se, na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), o princípio do modelo docente assistencial no ensino médico com discussão de casos clínicos atendidos no ambulatório de Medicina do Trabalho (PBL). Para a efetividade do ensino de Medicina do Trabalho e saúde do trabalhador, destaca-se a importância da integração do conteúdo teórico com o prático, por meio de visitas dos alunos aos ambientes de trabalho, processos e atividades distintas. O resultado da análise do conteúdo dos relatórios dos alunos — uma coletânea de extrato dos relatórios destas visitas — é apresentado neste artigo e expressa a percepção dos alunos nas respectivas categorias de análise, em relação à importância desta atividade para a sua formação.

A importância da anamnese ocupacional

As visitas possibilitaram aos alunos aprender que a simples informação sobre a profissão não é suficiente para entender como as atividades de trabalho se desenvolvem e que, em alguns casos, pode ser o desencadeante do processo de adoecimento, em outros, agravante de uma doença preexistente ou atual. Além disso, o afastamento do trabalho ou mudança da atividade pode ser fundamental na eficácia do tratamento ou mesmo na recuperação do paciente trabalhador, conforme as seguintes percepções descritas: "Geralmente, a pergunta a respeito da ocupação do paciente é feita logo na identificação e de maneira superficial. Entretanto, quando aprofundamos os questionamentos sobre sua função exercida na fábrica, Daniel nos revelou que, além de caixa, auxilia a carregar as baterias nos caminhões, e a embalá-las. Essas outras atividades que o funcionário acrescentou poderiam ser responsáveis por sintomas e lesões, que anteriormente, quando, para nós, ele era unicamente um caixa não caberia relacionar à ocupação do paciente. Portanto, a partir de agora prestaremos muito mais atenção quando formos interrogar o paciente — "E o quê o Senhor faz?" e "No quê o Senhor trabalha?".

Significado das visitas

Conhecer ambientes de trabalho possibilita que os alunos vivenciem as condições de trabalho e as situações de risco de doenças relacionadas ao trabalho, o que facilita a retenção do conhecimento teórico em sala. Vale ressaltar que dois aspectos são de extrema importância: o acompanhamento do docente nesta atividade, chamando a atenção dos alunos para aspectos que poderiam passar despercebidos, e a discussão realizada após a visita.

"Falar sobre a exposição jamais será como ser submetida a ela. Foi o que ocorreu ao sentir a irritação na mucosa devido ao vapor e à neblina de ácido sulfúrico, tentar carregar uma bateria e até mesmo ouvir o barulho ensurdecedor da serra cortando a placa de granito [... ]".

"Após essas experiências, com certeza daremos mais valor aos riscos à saúde causados pelo trabalho [... ]".

"Certamente, espera-se o contato com a sílica e o uso de ferramentas pesadas, mas experimentar o ruído das máquinas, o peso e o tamanho das peças, as condições de poeira do local fornece uma dimensão distinta a respeito do que se trata, quando o paciente/trabalhador se refere a um serviço em marmorarias".

"Também observamos se havia presença de agentes causadores ou agravantes de doenças, como agentes físicos, químicos, biológicos, ergonômicos, psicossociais e mecânicos".

"Saímos estudantes de Medicina e voltando para o mundo universitário, trazendo conosco uma bagagem de conhecimento real, sentindo um local de trabalho em que as condições são deficientes em termos estruturais e na segurança dos seus trabalhadores".

"A partir das observações, notamos a necessidade de um atendimento completo, observando os pacientes em suas relações com o ambiente e sociedade, identificando as condições reais do trabalho e das atividades desempenhadas [... ]".

"Cabe a mim, como médico, identificar as principais patologias associadas a algumas ocupações, para que minha investigação clínica seja a melhor e mais rápida possível e orientar o paciente sobre a importância de evitar agravos a sua saúde. Além disso, o médico tem papel fundamental como agente social no diagnóstico de patologias ocupacionais, na orientação dos trabalhadores sobre os riscos ao qual estão expostos e na busca por uma solução que impeça uma nova exposição junto com outros sujeitos".

O significado do trabalho no processo saúde-doença

No processo saúde-doença, o trabalho interfere na construção de identidade e autoestima dos indivíduos, sendo fonte de prazer e satisfação ou de insatisfação e adoecimento. Considerando-se o enfoque biopsicossocial da saúde, os fatores de riscos interferem diretamente na dinâmica de tais interações: "A noção de que o trabalho não está vinculado somente à sobrevivência não é novidade. Trata-se de uma ferramenta fundamental para a manutenção da sociedade e da própria construção do indivíduo em sua totalidade psicofisicossocial". "Percebe-se que o trabalho como determinante do processo saúde-doença é uma variável complexa que deve ser constantemente avaliada e reavaliada a fim de minimizar uma esfera de prejuízos, sejam eles químicos, físicos, biológicos, ergonômicos, mecânicos ou mesmo psicossociais".

Percepção sobre as condições de trabalho e riscos à saúde

Além dos fatores de risco clássicos como agentes físicos (ruído e calor), químicos (poeiras, fumos e vapores), por exemplo, aqueles relacionados à organização do trabalho, tais como horas extras e ausência de pausas, podem ser as causas do adoecimento, conforme descrito:

"O espaço foi improvisado para receber a produção e não tem a menor infraestrutura: mal ventilado, quente, com odores fortes concentrados, máquinas com segurança duvidosa e barulho constante". "Somado a isso, temos muito tempo de trabalho (11 horas diárias) e sobrecarga de alguns funcionários". "Os riscos aos quais o trabalhador está submetido são bem diversos, desde esmagamento, fraturas, doenças osteoarticulares derivadas do descarregamento com técnicas rudimentares das pedras, possíveis cortes devido à exposição na máquina de corte, problemas respiratórios diversos devido à poeira originada no manuseio das pedras, sendo o principal deles a silicose [... ]".

"Durante os processos citados, os trabalhadores estão sujeitos ao contato e à intoxicação pelo chumbo e ácido sulfúrico ocasionando corrosão da pele, ambos agentes químicos muito nocivos aos trabalhadores, levando ao seu adoecimento; a lesões articulares devido aos movimentos repetitivos que são realizados por cada trabalhador em cada parte da produção [... ]". "O mesmo círculo vicioso, um dos funcionários sofreu um agravo à saúde, recuperou-se e voltou ao mesmo trabalho, sem modificação nenhuma do ambiente e das condições que o levaram a este agravo".

Fatores psicossociais

Os fatores de risco psicossociais, relacionados com a organização do trabalho, tais como horas extras, trabalho em turnos, trabalho monótono, ritmo acelerado etc. , em muitos casos, são causas desencadeantes ou agravantes de transtornos mentais no trabalho. Os depoimentos a seguir ilustram tais situações:

"Um trabalhador relatou que são obrigados a realizar horas extras (caso não realizem, perdem o emprego), completando 12 horas de serviço diárias". "Outra questão que foi levantada por eles é que os parâmetros para receber a participação nos lucros incluem não poderem faltar de forma alguma, inclusive com a apresentação de atestado médico". "Também nos relataram que o trabalho na linha de montagem é muito desgastante e poucos aguentam realizá-lo, devido ao ritmo acelerado desse setor. Outro problema seria a imposição de turnos com horários fixos, que alteram o ritmo circadiano individual dos trabalhadores, levando ao estresse".

"A respeito do trabalho monótono realizado pela maioria dos trabalhadores, sendo evidente o risco de desenvolvimento de doenças mentais como depressão, transtorno de humor, dentre outras, já que eles trabalham o dia todo realizando movimentos repetitivos automáticos, sem conversar entre si (devido ao barulho e às metas que devem ser cumpridas), conseguimos entender a alta rotatividade de trabalhadores na empresa".

Fatores ergonômicos

Os DORT são a segunda causa de afastamento do trabalho entre os trabalhadores assalariados. Os processos de trabalho com máquinas automatizadas que aumentam a velocidade de movimentos, os excessos de carga e força e os movimentos repetitivos são alguns dos fatores desencadeantes:

"Ainda são vistos muitos movimentos repetitivos, problemas posturais e com sobrecarga, que precisam ser repensados pela segurança do trabalho". "A marmoraria e a fábrica de baterias, por serem menores, não têm processos de fabricação automatizados e, por isso, seus funcionários ainda não estão expostos a distúrbios como lesão por esforço repetitivo (LER) ou distúrbio osteomuscular relacionado ao trabalho (DORT)". "O peso excessivo dos sacos resultou no afastamento de vários funcionários por problemas lombares". "Ele manipulava um aparelho pesado e fazia movimentos repetitivos e de grande amplitude, possivelmente predispondo a lesões físicas musculares e ligamentares [... ]". "Na linha de montagem trabalham algumas mulheres, sendo que fomos informados que na estamparia é permitida apenas a contratação de pessoas do sexo masculino, pelo fato de o trabalho exigir mais esforço".

Agentes químicos e doenças relacionadas ao trabalho

Na casuística do ambulatório de Medicina do Trabalho, as principais doenças diagnosticadas em ordem de frequência são: DORT, pneumoconioses, dermatoses ocupacionais, intoxicação por chumbo e perda auditiva induzida por ruído. Essas doenças são temas de aulas teóricas e podem ser observadas nas situações reais de trabalho, durante as visitas, conforme depoimentos:

"A presença de fumos de chumbo no ambiente é basicamente inalatória, mas também existe um risco de contaminação por via oral (trabalhadores almoçam no ambiente contaminado)". "O risco não está limitado ao soldador [... ] Os fumos na produção, os quais misturados aos de plástico e ácido produzem um odor nauseante que parece envolver todo o galpão da fábrica, são um importante risco para intoxicação por esse metal [... ]".

"O ambiente era intensamente coberto por um pó branco sobre as peças, relógios, trabalhadores e solo [... ]". "Em outro extremo, observamos também o processo de usinagem a seco, que gera quantidade grande de poeira, que contém sílica e pode provocar a doença pulmonar chamada silicose [... ] Observamos o risco de desenvolvimento de elaioconiose, a partir do contato dos profissionais com o óleo de corte utilizado nessa etapa da produção". "Esse segundo funcionário escutava um som de grande intensidade, de tom muito agudo, possivelmente pela perda da sensibilidade a sons agudos, primeira a ser perdida no processo de degeneração auditiva".

Medidas preventivas e uso de equipamento de proteção individual

As doenças relacionadas ao trabalho e acidentes de trabalho são eventos preventivos, por meio da substituição de produtos perigosos ou tóxicos, medidas de proteção coletivas e individual tais como a utilização de equipamento de proteção individual (EPI). Os alunos têm a possibilidade de observar vários processos e tipos de empresas, e algumas que investem na eliminação do risco por meio da automatização dos processos de medidas de proteção coletiva, entre outras. Entretanto, para algumas empresas a prevenção resume-se na distribuição de EPI, conforme comentários críticos dos alunos:

"Uma medida que foi tomada para eliminar essa exposição foi a usinagem úmida que comprovadamente elimina o risco de silicose no ambiente de trabalho, não sendo necessário o uso de máscaras [... ]". "Existe até mesmo um sistema de acionamento bimanual que só conecta algumas máquinas quando os dois funcionários apertam os botões simultaneamente, evitando acidentes, existe um rodízio de tarefas, de modo que um operário não realiza a mesma atividade o turno todo, a fim de que eles possam fazer movimentos diferentes e trabalhar musculaturas distintas [... ]. "Como solução, outras filas da linha de montagem contavam com sistema de carregamento hidráulico, cabendo ao funcionário apenas o posicionamento do equipamento. A prioridade é a mudança das condições precárias de trabalho, a qual envolve a melhoria no ambiente e nos processos observados. O uso de EPIs deve ser secundário a outros processos, como as mudanças das condições de trabalho e a instalação de ambientes que não sejam danosos à saúde".

 

DISCUSSÃO

Em que pese o reconhecimento pelo Conselho Federal de Medicina (CFM) da Medicina do Trabalho como especialidade médica, por meio da Resolução CFM 1.634/2002 e da incorporação de itens específicos entre os princípios fundamentais do Código de Ética Médica em sua ultima revisão, o ensino de Medicina do Trabalho, saúde ocupacional ou saúde do trabalhador, nos cursos de graduação em Medicina, não deveria ser incorporado como mais uma especialidade médica dentro da formação do futuro profissional.

As Faculdades de Medicina devem graduar médicos capazes de resolver os principais problemas de saúde, reconhecer a determinação biológica, mas também social, nos processos saúde e doença. Neste sentido, o trabalho exerce um papel central na vida das pessoas uma vez que reforça a identidade e o vínculo social dos sujeitos pacientes, trabalhadores ou ex-trabalhadores, sendo fonte de realização e bem-estar ou de sofrimento e adoecimento. Todo médico precisa saber como realizar e valorizar a anamnese ocupacional durante a investigação da história de vida (e de trabalho) de seus pacientes, atuando na atenção básica, em Programas de Saúde da Família, nos hospitais, ao atender um acidentado do trabalho ou intoxicação aguda ou no próprio consultório, ao verificar que o trabalho pode estar interferindo diretamente na eficácia de um projeto terapêutico.

Como destaca Dias et al. 14,15, sobre as competências mínimas requeridas na formação profissional, todos os médicos, independentemente da sua especialidade de atuação, deveriam: "entender e valorizar a influência do meio ambiente e do ambiente de trabalho sobre a saúde humana; obter a história de exposição ambiental e história ocupacional de todos os pacientes; reconhecer sinais, sintomas, doenças e fontes de exposição relacionadas com os agentes ambientais e ocupacionais mais comuns, compreender e exercer as responsabilidades éticas e legais intrínsecas ao atendimento de pacientes com problemas e preocupações ocupacionais ou ambientais". Em relação aos aspectos éticos relacionados à Medicina do Trabalho e à saúde do trabalhador, o Código Internacional de Ética para os Profissionais de Saúde no Trabalho, traduzido e divulgado pela Associação Nacional de Medicina do Trabalho (ANAMT), detalha os aspectos relevantes para o médico no atendimento do trabalhador.

Para que estas finalidades sejam atingidas, é necessário que os currículos de Medicina incorporem as questões Saúde e Trabalho a partir do ensino da anamnese e propedêutica, informando a profissão e as condições de trabalho e o contexto do adoecimento. Desse modo, o ensino de medicina do trabalho e saúde do trabalhador não deve se limitar ao que se ensina (conteúdo programático), mas como se ensina (método). Da mesma forma que os serviços de saúde (primário, secundário ou terciário) são palcos privilegiados para o ensino da clínica, o ensino de medicina do trabalho não pode prescindir das visitas nos locais de trabalho.

No campo da formação médica, a resolução do Conselho Nacional de Educação que instituiu as Diretrizes Curriculares Nacionais para o Curso de Graduação em Medicina16 define, no artigo 4º, que "a formação do médico tem por objetivo dotar o profissional dos conhecimentos requeridos para o exercício de competências e habilidades". Apesar da obrigatoriedade da inserção do conteúdo de Medicina do Trabalho no currículo médico, estudo recente realizado por Kawakami et al. 6 apontou que somente 48 das 176 escolas de medicina do Brasil responderam à pesquisa. Destas, a maioria (76,9%) realiza visitas nos locais de trabalho e inclui a discussão de casos (61,5%) na metodologia de ensino. Por outro lado, entre as dificuldades de realização das atividades práticas, nos ambulatórios de serviço especializado e visitas a empresas, está a falta de docentes e tutores para a viabilização de grupos pequenos (8 a 12 alunos)6,7,10,12.

 

CONCLUSÕES

O aprimoramento do ensino para formar médicos que atendam às necessidades da sociedade é um desafio permanente para as escolas de medicina. Esse cuidado deve ser mais consistentemente seguido na atualidade, principalmente após a manifestação do CFM em 1998 atribuindo a todo o médico, uma responsabilidade até então não levada muito a sério a atenção que merece o trabalho e todos os componentes do mesmo numa possível interferência no processo saúde e doença, até mesmo no processo de cura e/ou reabilitação do paciente.

Nos relatos das percepções dos alunos durante as visitas nos locais de trabalho, os alunos ouviram o ruído, sentiram o cheiro de substâncias, viram poeiras e fumos metálicos, observaram os movimentos repetitivos e o trabalho monótono e, por meio de entrevistas com trabalhadores, puderam perceber que o trabalho pode ser uma fonte de prazer ou de adoecimento. Após as mesmas, ficou a convicção de que a pergunta clássica da anamnese ocupacional — "o quê você faz e como faz" — jamais será esquecida durante a investigação das doenças dos trabalhadores e da influência do trabalho entre os fatores determinantes.

 

REFERÊNCIAS

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Trabalho realizado na Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) – Campinas (SP), Brasil.

Recebido em 31 de Maio de 2012.
Aceito em 20 de Setembro de 2012.

Fonte de financiamento: nenhuma

Conflito de interesses: nada a declarar


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